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16.5.05

Quase filha

Na quinta-feira estava bem, passou a manhã a receber e a enviar SMSs. Sentada na cama. Doida, maluca, alevantada, renascida, com a morfina que lhe amainou as dores e lhe deu aquela euforia calma do alívio. A mãe, ao lado, olhava para ela com a devoção com que se mira uma campa bonita e adiada. Porque eu tinha-lhe dito, à mãe, minutos antes, o destino.
No domingo telefonou-me o irmão, de longe. Num desespero gemido, entoou a cantiga de amigo que todos sabemos de cor.

"Eu não quero que ela morra, ai não.
Eu sou irmão
Morrer não, por favor, ai não
Que mesmo que não fosse irmão, não, não
Não quereria."

Sou fraco em canções de amigo, mas estou habituado às impotências, às disfunções erécteis do músculo da coragem. Eu mesmo a perco toda se me suplicam cobardias. Lá lhe disse "que sim e que não; que talvez não, mas que não sabia mesmo". Aquelas coisas que quem já sabe diz a quem também já sabe mas pode fingir que não, quando a sabedoria incomoda tanto que se torna num jogo de escondidas. Gato escondido com rabo de fora? Não. É mais gato à vista e a gente a fechar os olhos, gato a miar e a gente a fingir que não o ouve. É assim um jogo estúpido e mau. Doloroso.

Ela tinha os olhos azuis, na quinta-feira. Reparei nisso logo. Porque uns olhos com medo são uns olhos com medo, mas se calha serem azuis é um medo mais raro. O medo meridional assume qualquer coisa de nórdico, nessa raridade.
Reparem: nórdico no sentido de "elevado e frio". Foi do monte mais alto e mais frio que ela conseguiu subir que me perguntou, na quinta-feira, se ia morrer.

Eu disse-lhe que não. Pensem o que quiserem. Ela tem vinte e seis anos e um filho de cinco. Quem sou eu para lhe tirar o filho numa quinta-feira qualquer? Um filho da puta? Não sou. Não me fodam, não sou.

Hoje voltou, fora de tempo, o combinado era que viesse quinta. Veio hoje. Com dores, outra vez, porque decidira reduzir à morfina. Somos poupados: "se não me dói com três, pode ser que isto tenha passado e vou tirar a prova: não tomo, a ver". E viu.

Vê-se, também, com os olhos. Os olhos dela pareceram-me logo mais verdes que azuis e demorei pouco a perceber porquê. A bilirrubina é uma inocente criatura, se tivermos um fígado capaz. Se tivermos um fígado carregado de morte às bolinhas, ainda por cima uma morte vinda do estômago, a nossa víscera mais prostituta, porque se vende à facilidade do seu destino de "entreposto da comida", se tivermos um fígado desses a bilirrubina pinta-nos do amarelo da morte com brocha lépida e grosseira.

E esverdeia olhos azuis. Se virmos os olhos azuis como se fossem um todo colorido, esverdeia.

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