Já quase no fim, um bom dia!
Começar a ver uma revolução aos treze anos é estranho. “Começar a ver” pressupõe continuidades de visão. Isto é importante, mas agora não. Não se sabe nada de revoluções aos treze anos. Aos treze anos, se se lembram, ainda nem se tem bem ideia de como as coisas são, quanto mais ciência de necessidades de mudança.Depois, vai-se crescendo. Cresce-se sempre, dos treze anos em diante, mas às vezes cresce-se mais depressa do que seria suposto. Por exemplo porque, à nossa volta, acontecem muitas coisas. E nós queremos, por força, entendê-las, participar nelas. Mas isso é mais tarde, têm razão, não é aos treze anos. Aos treze anos é só estranho, não se cresce especialmente.
Tenho, outra vez, treze anos. Fechei os olhos, escrevo com a minha memória antiga toda na polpa dos dedos. A única sensação estranha é a das teclas.
Moro a cem metros do liceu e saio de casa, como sempre, pouco depois do primeiro toque. A correr, já quase atleta nas minhas sapatilhas "Sanjo".
O João é mais velho e sabe das coisas, sempre, mais depressa. Neto e filho de médicos, escritores e políticos, domina ciências estranhas. É o "médico", já naquela altura, da nossa “brilhante” equipa de hóquei em patins (o talentoso "K-74), o fornecedor assisado de pastilhas efervescentes de vitamina C, nos intervalos.
O João sussurra coisas no meio duma roda. Está sempre no meio duma roda, o João. Redondo adiamento que me parece desajustado às minhas emergências de bola a saltar. Chego-me e percebo que há coisa. Que coisa é sabem os senhores, sabemos todos, agora. Roda cada vez mais larga, o João no meio. A bola, parada, branca.
O tempo salta, foge-nos, por debaixo dum céu azul entremeado de nuvens brancas que já choveram de véspera. As aulas prosseguem, na normalidade possível: este “possível” nem é, sequer, por nossa causa; é que há professores de vinte e poucos anos a esfregar as mãos, todos contentes de “já não vou para África”. Aos treze anos percebe-se bem isto, porque sabemos que podem faltar-nos lépidos sete anos para ser connosco.
“Reitora, rua!”, apareceu escrito no muro do liceu. E os mais velhos desenharam um peito nu, de mulher, na sala de convívio, toda pintada de vermelho. A sala de convívio foi reivindicação que se ganhou; logo feita, ainda por cima, quase de raiz, no antigo vestiário das meninas. Música alto, mesa de pingue-pongue, sofás, cigarros. Os primeiros charros. Em toda a gente se descobria um corpo novo, que dantes não se tinha.
Por outro lado, o Mário Jorge, que ia reprovar por faltas, sete negativas no primeiro período, acabou por dispensar de exame. E os mais velhos, os que tinham desenhado tão bem o peito nu, negro sobre vermelho, desataram a fazer pressão revolucionária para copiar por quem sabiam saber menos de tudo, menos do que se perguntava em reaccionária folha de teste.
A própria Filosofia, já mais tarde, passou a ser uma cadeira “muito subjectiva”: quanto maior a ignorância do pensamento dos outros, maior o espaço para a nossa subjectividade. O Português, esse, tornou-se uma chatice; aula propícia a “faltas colectivas por causa de meia dúzia que não queriam”. Chegaram os retornados, que já conheciam coisas, mesmo questões de Coca-Cola.
E nós ali, tão sós, sós tão de repente, ainda sem ter lugar para partir, grande tristeza. Não entendam mal, não é fugir, é que quando percebemos que já não cabemos bem num sítio, porque começamos a não querer, sequer, perceber o que nos dizem os outros, os outros que (afinal) copiam por nós, damos por nós a querer lugar numa viagem qualquer, nem que seja para o sítio donde vêm os outros, encher o espaço que os outros deixaram, esse sim livre. Livre, ao menos, deles...
Ficámos cá, contudo. Quase todos presos de nós e a nós e com muito tempo para aprender, que não se aprende tudo num ano, muito menos aos treze anos.
E ainda bem que ficámos. Estamos por aqui. Ancorados à pequena ciência que o tempo e o pensar ensinam. Essa pequena ciência de que tinha de ser assim, amarrada (siamesas de faz-de-conta) à ciência plena de que não foi bem assim: nem como dizem os que se lembram mal, nem como conta quem nem sequer se lembra.
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