O fim da pólvora. Seca e fria.
Não há dia nenhum, há mais de um mês e meio, que se não entre na urgência sem se ficar oleoso. Há muito unto na desgraça. E o unto, em camadas, exala o odor próprio do unto antigo e sedimentado. O unto é um caldo de cultura: meta-se o unto num autoclave e verifica-se que está ali um unto pleno. Os doentes e nós, ali no caldo.A sala de observações da urgência, concebida para estadias (tendencialmente curtas) de casos mais graves, doentes ainda sem vaga na UCIP, na UCIC, ou nas UI (unidades intermédias), ou, então, para estudo e observação (OBS, chama-se assim às salas de observação, esta era fácil) da evolução de casos ainda mal definidos, que fazem hesitar entre a alta e o internamento, subverteu-se na sua função. Há vários lustros que se subverteu, ficando lustrosa. Do unto. Transformou-se no depósito de doentes sem vaga em sítio nenhum. "Não há vagas? OK", babuja o director.
Ser director da urgência é, hoje em dia, prosperar de amarelo.
No meu hospital, as salas de OBS têm, há dez anos, 9 camas. Três salas, três camas por sala, dá nove. Todos os anos, por esta altura, em que o frio aperta em Trás-os-Montes, se depositam lá, diariamente, entre vinte e vinte e cinco doentes. A média etária dos doentes é, se eu exagerar, de duzentos e dezassete anos. Um médico que lá entre com trinta e cinco anos sai de lá, doze horas depois, se eu exagerar, com quarenta e um. Um doente que lá entre com duzentos e oito anos, sai, se sair, com trezentos e doze. E nove camas para vinte e cinco doentes... são dezasseis macas. Eu deixei de exagerar logo que falei dos doentes, note-se.
Todos os anos é a mesma coisa. Todos os anos se sabe que vai ser assim. Todos os anos se implementam medidas. Eu explico isto, o que vem a ser isto de "implementar medidas".
Implementar medidas, já se sabe, é aquilo que faz um ser humano avesso à água e ao sabão, quando passa BAC (ou outro "roll on") nas axilas encardidas: uma operação de camuflagem. O problema está ali e berra alto. Os problemas berram, exigem solução, querem-na agora. Vem o director, o mais recente, e diz o que disse o anterior, antes dele. Por baixo dele, aliás, que isto é sedimentar, já expliquei. Diz ele assim, o de agora, comp dizia o anterior: "o problema é perspectivar o futuro, nunca o presente, que a culpa é do passado, à luz da economia". Ora a economia. A economia é luzinha que só sabe de si e de si vive, economicamente. O que a legitima, obviamente, para mandar em tudo: a economia é o David Beckham do mundo, não joga grande merda mas vai tremendamente bem em "outdoors".
Abram, senhores, as enfermarias que estão fechadas, à espera de enfermagem mal paga. Que, mal paga, não vem. Fechem, e reabram com função decente, as camas destinadas ao "estudo do sono"! O "estudo do sono", essa primazia! Isso faz-se, com vantagem, no cinema: monitorizem os doentes durante o último flato desanimado de Manoel de Oliveira, aquele do reizinho pequeno de Portugal (ou outro qualquer).
Contratem médicos, experimentando pagar-lhes mais do que lhes pagam no Porto. Pode ser que, por mais dinheiro, venham do Porto até ao gelo. Por menos dinheiro pode ser que venham, há malucos para tudo, mas cada vez há menos malucos desses. Eu duvido. E os senhores, que já tentam essa estratégia tipo "SAD do Sporting" há dezenas de meses, deviam ter a certeza da merda que têm estado a fazer: não veio para cá nenhum!
Ampliem a área de depósito a que chamam OBS e confiram-lhe a dignidade duma grande UCIP, ao menos em termos de "ratios" doentes/enfermeiros/médicos! Uma UCIP de seis camas funciona sempre bem, porque são só seis camas, um doente por cama, seis doentes! Três médicos e não sei quantos enfermeiros para seis camas dá ... enfim, dá lustro a qualquer casa. Pequena. Se for uma casa grande é diferente. Qualquer sopeira sabe que, se tiver de tratar apenas da sala de visitas, a limpa esmeradamente, várias vezes por dia, se for preciso. Difícil é manter o resto da casa limpa, no mesmo espaço de tempo, sem sopeira nenhuma.
Bom. Chega.
É que vem aí, pelos vistos, um frio ainda maior. E eu pensava que já havia aqui frio que chegasse.
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