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6.1.05

Chá de tília

A invocação do direito ao preconceito, que a Lolita ali abaixo vitupera com o meu aplauso "a mãos ambas", mais não é, hoje, que a elaboração esoterico-silogística do pensamento da minha falecida Tia Miquinhas.
Com oitenta anos na altura do PREC, a minha Tia Miquinhas desafiava a teoria da igualdade de direitos afirmando, às patadas, que “eu não sou igual a nenhuma puta!”.
Na altura, rapazelho, apetecia-me responder-lhe que sossegasse, “que não se preocupasse com confusões, que estava demasiado engelhada para ter sucesso na profissão liberal mais antiga do mundo”. Soube depois que não era esta, sequer, a mais antiga profissão do mundo, que os prestamistas terão surgido mais cedo, embora haja quem sustente que não houve prestamista nenhum que não tenha sido embrião em ventre de puta. Isto é discutível, como indiscutível é que filhos da puta não faltam.

Não se pode ser intelectualmente honesto quando se apregoa sentida solidariedade para com as vítimas de catástrofes naturais ou de cataclismos bélicos, quando se manifestam preocupações exaltadas ou contritas com a fome e o sofrimento alheio, individual ou colectivo, ao mesmo tempo que se defende, com leveza, a segregação e o egoísmo como um direito. Não é um direito: é filhadaputice. Não se pode, sem sentir vergonha, apregoar solidariedades e, ao mesmo tempo, fomentar ghettos. Sejam eles ghettos vistos de dentro ou vistos de fora.

A vida tem um sentido colectivo que é polvilhado dos egoísmos de cada um, mas só faz sentido se for isso mesmo, perde-o todo se se limitar ao somatório de egoísmos que as Tias Miquinhas insistem em edificar no chão que pisam. Que até pode ser o chão delas, das Tias Miquinhas, numa dimensão tipo "conservatória do registo civil". Mas que é um chão de todos, visto lá de cima, de mais alto. Vivemos num planeta, Tias! Esta bola azulada, vista de longe, é o que é, um planetazito. Não é o balcão duma mercearia, nem uma loja da Façonnable. Não é de ninguém.
Uma Tia Miquinhas culta pode ser um poço de cultura, mas não deixa de ser uma Tia Miquinhas. Que descanse em paz.

O egoísmo é um direito de todos e, como é de todos, está bem assim, é o que se apregoa nas tertúlias de que falas, Lolita. Não te preocupes: para já, ainda não colhe futos a bizarria dos traidores da humanidade. E sempre que colheu, ou esteve perto de colher, a humanidade soube pendurar os cabecilhas da bizarria pelos pés, em candeeiros ou árvores mais altas, num egoísmo muito próprio da humanidade e legitimado pela bizarria despudorada dos dependurados. E é sempre aí, de pés para cima, quando os segregadores do Homem são despojados da sua ortodoxia modernaça, que os mortos de fome, os antigos segregados, os escarram, alarvemente. Legitimando nova onda de bizarria anos mais tarde.

São ondas. Há as grandes e há, de vez em quando, as dos algarves. Aquelas que Lobo Antunes dizia serem pequenas coisas de “mares de papel”.

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