blog caliente.

1.1.05

As nossas boas vidas

Nos semáforos do final da Avenida do Marechal Gomes da Costa, por onde passo os dias a caminho do trabalho, estão quase sempre duas ou três ciganas romenas de bebés ao colo, insistentes, pedinchando qualquer coisa. Quase sempre dinheiro e, se dinheiro não for, qualquer coisa que valha qualquer coisa - até cigarros. Em cada dez condutores aguardando o sinal verde, uns seis enxotam-nas com um só gesto e três recusam-se à esmola, após insistência; só um, de todos, sossega a sua consciência oferecendo alguns poucos cêntimos do dinheiro que não lhe faz falta. Em geral, eu fico no grupo dos três que resistem e que, uma vez por semana, fraquejam. São as consciências, levezinhas, de quem vive bem; o nosso dinheiro pertence-nos e há outras pessoas, outras entidades que deviam encarregar-se dos pedintes. Dos que são miseráveis, dos que nos invadem a nossa boa vida mostrando-nos a sua miséria à transparência. Quando a miséria ou a tragédia são longínquas, mais fácil se torna. Só as televisões nos ligam a elas e quando as vemos, pensamos nas nossas boas vidas em contraste com aquelas vidas desfeitas. Ao longe. Sentimos dor por todos eles, imaginamos como seria para nós uma onda enfurecida a entrar-nos adentro nos nossos entes e haveres. Depois continuamos na nossa boa vida, observando-os, sabendo que sofrem. Ao longe, sempre ao longe. E nada muda, nem neste ano novo, nas nossas boas vidas.

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