blog caliente.

28.12.04

Pequenos ódios passam devagar

A S.A. que me governa tem dificuldades em arranjar (detesto este verbo, "arranjar", mas ele existe) médicos para fazer triagem na urgência.
Triagem, na versão portuguesa (há uma versão de Manchester, inglesa, que consiste em ser tudo, na mesma, ao monte, mas de forma colorida: isto é, os doentes vão chegando e há uma brigada, que recebeu formação e diploma alusivo, que se limita a colorir as fichas e a dizer, a quem tem de os ver - aos doentes -, a ordem correcta por que tem de os ver - aos doentes), a triagem, na versão portuguesa, dizia eu, é aquela actividade que consiste em avaliar utentes que chegam, em média, de cinco em cinco minutos. Com queixas que variam desde a dor aguda à profunda e crónica agonia. Não é diferente disto, não pensem, é mesmo assim. E são quase todos velhos.

Isto é a teoria dos intermediários, levada ao cabo dos trabalhos da intermediagem: há os doentes, há os que os vêem e tratam e, depois (ou pelos entrefolhos) há aquela gente extremamente útil e bem intencionada que ganha a vida ali pelo meio. Eu penso que se a triagem de Manchester tivesse sido criada no Sudão e se chamasse, por exemplo, triagem de Cartum, teria menos sucesso. Mas não posso provar isto.

Mas é o mesmo com o bacalhau (e com o outro pescado): há quem o pesque, ao bacalhau (e ao outro pescado), quem precise de o comer, ao bacalhau (e ao outro pescado), em cozinhados variados... e montes de gente, pelo meio, a fazer de conta que também pescou o bacalhau (e o outro pescado), encarecendo-o, dificultando-o aos outros, usufruindo-o. No fundo, bem vistas as coisas, a quem serve o bacalhau? E o outro pescado?
Pois. A culpa será, porventura, dos grelos.

Bom, Leonor Beleza é a culpada inicial de tudo isto, por motivos que nenhum médico que não seja oftalmologista ou otorrinolaringologista, ou então especialista daquelas coisas que são muito importantes para o sistema de saúde, como a medicina nuclear e a investigação da mitocôndria (geralmente, estes médicos trabalham em hospitais universitários e ocupam lugares nos quadros desses hospitais, como se fossem médicos a sério, trabalhando muito pouco naquilo que custa mais, que é ver doentinhos) sabe perfeitamente. Foi ela, Leonor Beleza, que iniciou, com o beneplácito amuado da Ordem, o boicote à formação de médicos. Sobretudo daqueles que vêem doentes. Foi ela. Hei-de repeti-lo sempre, é a mais pura das verdades, foi ela. Se quiserem, explico isto melhor, um dia. É só pedirem.

Bom, mas isto é tergiversar. Gosto desta palavra, "tergiversar", tinha por força de a meter aqui, a golpes de martelo.
O problema da minha S.A. é que, agora, tem dificuldade em entender como é que um médico com dois anos de formação (enfim, terminado o internato geral, já pode passar receitas) prefere trabalhar num hospital indiferenciado, fazer triagem lá, a vir ufanar-se de labutar no nosso, refastelado na certeza de trabalhar o dobro... ganhando metade. A nossa S.A. tem dificuldades nisto. "O homem deve ser maluco! Então não quer ganhar aqui quinhentos, prefere ganhar mil naquela espelunca?". A nossa S.A. devia demitir-se e ir fazer cursinhos de lavores.

A nossa S.A. não percebeu que tem de pagar mais, e é se quer, para cumprir as suas próprias regras de competitividade. As S.A. criaram free-lancers e não sabem lidar com eles.

Acabem com elas todas, pelo amor de Deus. Incompetência é mais ou menos isto. É nem sequer perceber, ou, pior ainda, estar a marimbar-se para o entendimento.

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