Os rótulos
Entrou de maca e já não saiu. Um homem grande, de 70 anos, com dores de barriga. Um fígado descomunal que se palpava com os olhos. Bom estado geral, mas uma fraqueza de semanas a dar-lhe aquele "ar de doente" que a gente pressente nas atitudes de abandono e adinamia.A TC explicou-lhe o fígado disforme: metastização hepática difusa. Ficou internado para estudo. Para a gente lhe determinar a origem do mal de que nos vai morrer. E para tentar, depois de saber, atrasar-lhe a morte. Modificar-lhe o prazo.
O certo é que, até hoje, estava vivo. A partir de hoje, ele não sabe, mas eu já sei: é o resto dum homem reduzido a questões de tempo, carecido de rótulo na certidão de óbito. É, também, a certeza de mais uma luta inglória, na vã tentativa de adiar a certidão a um homem encurtado, definitivamente, no seu tempo. E no nosso.
Os damascos estão cada vez mais bonitos. As cerejas estão boas. E o trânsito de Vénus lá se fez sem mim, como a maior parte das coisas lá se vão fazendo. Felizmente continua a haver luar. E eu consolo-me de ser ineficaz com a certeza simples de que, também, nunca mais vou ver Vénus a desfilar pelo Sol, pequeno mas todinho. Uma espécie de solidariedade bacoca de quem sabe do fim do outro e se sente vagamente culpado por ainda ninguém lhe ter dito do seu.
Eu sei que uma coisa não tem nada a ver com a outra, Vénus e mtástases. Mas passou-se tudo no mesmo dia. Como se Vénus, mais amigo e rápido, fosse uma fugaz metástase (curável) do nosso Sol.
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