A modernidade
Se bem se lembram (como dizia Vitorino Nemésio, mas de forma reflexiva), o concurso para a escolha da Miss Portugal consistia, até há pouco tempo atrás, num programa confrangedoramente anacrónico, apresentado pelo Eládio Clímaco (sempre achei que este homem tem nome - e físico, talvez - de marciano) e pela Ana Zanatti (que entretanto se deixou dessas coisas para se tornar numa espécie de diáfana semi-diva da produção cultural portuguesa), ambos com a sua dicção p-e-r-f-e-i-t-a e entoação pastosa, como se usava no tempo da pasta medicinal Couto, e que, na actualidade, foram sucedidos com vantagem pelo José Carlos Malato e pela Serenella Andrade, que permanentemente exibem aquele esgar contentinho de quem está feliz com a sua vidinha pateta. O concurso Miss Portugal, dizia eu, era invariavelmente gravado nesse mausoléu da piroseira chamado Casino Estoril, onde, para o evento, se montavam cenários modestos de cartolina e esferovite e a música ambiente, enquanto desfilavam as misses, era escolhida de entre os concertos de piano do Richard Clayderman (que, aliás, também tinha o mesmo tipo de sorriso do Malato e da Serenella) e as variações melódicas da música do mundo, à qual, hoje sabemos, devemos chamar world music. Aquilo tudo tinha qualquer coisa de deprimente: o programa era lento, entediante e tristonho, embora ufanamente solene porque, afinal, estavam todos ali engalanados para escolher a miss Portugal. Como o Festival RTP da Canção, era, nos anos noventa, um resquício do Portugal obsoleto, bafiento e pobrezinho. Que, apesar dos sinais exteriores, não (r)evoluiu assim tanto daí para a frente... mas isso não vem aqui ao caso.Entrámos, então, no século XXI. A modernidade inspirou os criativos da produção televisiva das estações modernas e inovadoras (leia-se SIC e TVI) a alterar os formatos do entretainement e a torná-los coloridos, radicais, irreverentes, com imagens desconstruídas, close-ups artísticos e apresentadores fresquinhos e humoristas. E assim nasceu o “Sonho de Mulher”, um programa reality-showesco que se destina à escolha da Miss Portugal 2004 e onde tudo mudou, com excepção das rapariguinhas candidatas a miss, todas semelhantes, na postura e nos anseios, às de há trinta anos atrás. Bonitas, esculturais e ignorantes, todas sonham ser manequins ou, nesse papel, poder acabar com a fome do mundo depois de arranjarem as unhas.
O que complica tudo é que a modernidade introduziu uma areia na engrenagem dificilmente compatibilizável com aquele estereótipo feminino. Ao que percebi, Manuel Serrão (o gigante) e o seu compincha (também gordo) que não conheço, que lá estão a apreciar, distanciada e cientificamente, os atributos das meninas defendem que as candidatas a miss não podem ser só bonitas; impõe-se que saibam, também, que Portugal entrou na modernidade. Na presença de uma posta de bacalhau, seria exigível que descrevessem, com graça, o contexto do bacalhau no Portugal moderno ou que mostrassem um desprezo profundo pelo galo de Barcelos e que esse desprezo servisse de mote para que exortassem os portugueses a alinhar com o mundo civilizado. O júri – os tais dois sapientes connaisseurs do género feminino, mais duas pimpolhas excessivamente enfeitadas que devem, em tempos, ter sido misses (uma delas, suponho, em sonhos) – indignado, afirmou que uma miss não pode deixar de conhecer a evolução histórico-cultural da sociedade portuguesa, agora virada para a Europa (Manuel Serrão, sic). As meninas arregalavam os olhos, inseguras, sem nunca, porém, perder o sorriso - de novo, e curiosamente, o tal sorriso à Malato/Serenella. Julgo que se sentiram traídas, injustiçadas. Afinal, isto é só um concurso de misses, eu não tenho por onde mostrar mais do que isto que está à vista – o meu físico. É o que tenho e não sou obrigada a mostrar mais nem sequer fui preparada para isso. Por isso concorri a um concurso chamado “Sonho de Mulher”: sorrio e desfilo, não venho aqui para falar muito, a não ser para agradecer, terão pensado as meninas. Têm razão. Maldita e preconceituosa modernidade: querem, à força, fazer delas tristes clones da Margarida Rebelo Pinto.
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