blog caliente.

22.5.04

La vie en gris



Mais uma excelente noite passada no Serviço de Urgência. Consegui descansar cerca de duas horas, o que é bastante bom para quem, como eu, “está ali para trabalhar”. Gosto deste determinismo europeísta, “sopeira evoluída-like” , que querem?

Os casos mais marcantes foram:

1. Encefalopatia hepática, em doente do sexo masculino, 63 anos de idade, que mantém alcoolismo activo e entusiástico, manifestando espanto recorrente (partilhado pela família, também consumidora dos discos de Baco) pelo facto de acordar no hospital de três em três dias.
2. Aflições e formigueiros pelo corpo todo, em doente do sexo feminino, 71 anos, com antecedentes de cirurgia cardíaca. Não há clínico geral que não a mande ao SU se a paciente se queixar dum flato. Eu faria o mesmo. Depois, um dia, morrem-nos... é só complicações... siga para o Hospital.
3. Coma hipoglicémico, em doente do sexo masculino, 68 anos, diabético desde 1979, que ainda não percebeu que um diabético tem de comer. Duas ampolas de glicose a 20% fizeram-no verberar, pela noite fora, o sistema de saúde que lhe devolveu as forças para falar.
4. AVC em doente do sexo feminino, 79 anos de idade. Sete eventos idênticos anteriores, percebendo-se, a custo, que este novo AVC provocara uma ligeira diminuição da força do polegar esquerdo, até porque se tratava de pessoa em coma desde o quarto acidente. Não deixava dormir a família com o seu resfolegar de morte. Que veio a acontecer, a contento da parentela. Isto é controverso, mas eles pareciam aliviados, sobretudo por poderem deixá-la a morrer no Hospital. Em casa, aparentemente, seria complicado, por causa dos netos emigrados na Suíça, que tendem a achar que “em Portugal nunca se faz tudo” . A bem dizer, “nunca se faz nada” , devem regurgitar eles. Porque ainda é quase de borla, filhos da puta, haveis de pensar vós, “xeus xuíxos”, digo eu, que tenho pouca paciência para preços.
5. Disfagia com 3 meses de evolução, em doente do sexo masculino, 61 anos de idade. Na madrugada de ontem resolveu ingerir, mais uma vez, água (tinha sede, o pobre diabo!) e “não passou”. RX de tórax mostrando alargamento do mediastino. TC torácica, sem contraste, mostrando colapso esofágico e espessamento de paredes da víscera. Internamento, com palpite de cancro e morte para breve, independentemente da abordagem. Com este falei bastante. Até porque este falava e, mais do que isso, em 3 meses ninguém lhe pediu uma endoscopia. O resultado final seria, eventualmente, o mesmo. Mas uma endoscopia é o exame correcto, até uma peixeira treinada o pediria. Azia do médico (eu), já com sono, contra o sistema. Que posso ser eu, às vezes, o sistema.
6. Enfermeira reformada, 66 anos, que vive só, com ansiedade. Legítimo recurso ao SU. A solidão é respeitável. Também é respeitável, melhor dizendo.
7. Jovem de 19 anos, cheirando a “erva”, com palpitações. O indicado seria obrigá-lo a repouso e a frequentar as crónicas do Pereira Coutinho, mas foi mandado para valoración por medicina interna por um galego qualquer, ensonado. Disse várias coisas, o petiz, entre elas que me ia bater. Não resisti e afirmei-lhe que o partia todo, logo que se tivesse em pé. Pareceu-me convencido, mas pode voltar um dia destes. Abandonou o SU às 6 da manhã, aos pontapés a tudo, derrubando o soro do doente referido em 3 e ameaçando-me de regresso. Eu disse-lhe o nome: “volta, pá, e pergunta pelo Manolo, dos Cuidados Intensivos!”. Enfim, um homem vinga-se, quando pode....
8. Chamada ao Serviço. Doente de 88 anos, em coma, que convulsivou na sua febre. Vi a TC cerebral prévia, onde se lia “couve”. Paracetamol endovenoso, após leitura de diário clínico onde estava expresso um “mantém o mesmo estado” revelador. Ainda um dia hei-de ler, porque Deus é grande, “mantém estado clínico diferente”, num diário. Hei-de felicitar o autor. Pela bizarria.
9. Edema agudo do pulmão em doente do sexo masculino, 90 anos de idade. Boa resposta ao Lasix e restantes medidas. Deixei-o sentado no leito, a tomar o pequeno almoço. Guicho, sacana do velho, fixei-lhe a cara e comigo não morre.
10. Intoxicação por alprazolam em jovem do sexo feminino, 22 anos. Duas caixas. Queria morrer porque o namorado tem outra. Não é que não seja razão para querer morrer, mas ao menos não vomitem logo. Não resulta, assim.
11. Telefonema , às 8 horas (foda-se!) de pessoa amiga que tinha empenho por pai de amigo de amigo. Problemas de cardiopatia isquémica, falta de ar e ausência duradoura de emissão da redentora e amarelada urina. 80 gastos anos. Vinha a caminho, buzinando. Levantei-me, passei o turno ( e o empenho) e fui ver os meus doentes oncológicos ao Serviço. Todos bem, aparentemente, mesmo o velho do carcinoma gástrico a fazer Cisplatina e 5-FU. Dei altas. Ficam sempre contentes, de dia, quando saem do hospital, para casa. E eu, merda do caraças, acabo por gostar deles todos. Até porque o meu pensamento é o mesmo: “deixem-me sair daqui também, isto não passa duma imitação da vida e, um dia, isto é comigo mesmo e, às tantas, já não saio.” .

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