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1.5.07

A fenomenologia portuguesa no século vinte

A tua expressão foi bem escolhida, Alonso: de facto, Salazar foi e continua a ser um fenómeno, em tantas perspectivas possíveis. Desde o facto de ter conseguido perpetuar uma economia neo-feudal num país europeu e em pleno século vinte quando o resto da Europa já mergulhava na terceira vaga da Revolução Industrial iniciada no século anterior, até à fervorosa simpatia que ainda granjeia num punhado de portugueses da era moderna, certamente nostálgicos, mais do que de um regulador dos inconvenientes do livre pensamento, de um messias que os salve e que lhes indique o rumo.

Lembraste-te da Odete Santos; e foi bem lembrado. Se vires bem, é fácil concluíres que (nas tuas palavras) a “virulência do teu assomo” pró-salazarista é bem mais parecida com as exacerbações Odetianas do que com a minha confessada perplexidade perante as recentes tentativas de reabilitação de Salazar e da sua “obra”. Tanto é assim, Alonso, que o qualificas como um homem “invulgarmente inteligente” sem sequer explicares em que acções ou pensamentos se vislumbrou essa inteligência invulgar. De forma semelhante, afinal, àquela com que a Odete Santos se indignou com a eleição de Salazar no reality-comic-show da RTP... enfim, como sabemos, essa tua atitude (e a da Odete) costuma ser típica de iconografias emotivas cuja essência dispensa a validade da razão nos argumentos. É verdade, Alonso: tu e a Odete Santos, antagónicos na ideologia, são, afinal, semelhantes na idolatria. Quem diria…

A tua apologia neo-salazarista é esforçada; mas, lamentavelmente, não consegues evitar que fiquem umas pontinhas de incongruência nos aspectos para os quais não encontras explicação, se admitires o tal perfil de homem “invulgarmente inteligente” e cuja integridade moral “abundava”. Notei, por exemplo, que não leste (ou tresleste como melhor te conveio) o que eu referi sobre a forma ignóbil, desproporcionada e infame como Salazar castigou Sousa Mendes pela desobediência; o mais ignóbil de tudo é que isso não o impediu de, no final da guerra, ter afirmado em discurso à nação, com flagrante despudor, que salvou todos os refugiados que pôde salvar e que lamentava não ter podido salvar mais. Que dizes tu este dignificante evento, como exemplo ilustrativo da sua profunda integridade moral? E o que dizer da sua poderosa e omnipresente polícia política? E do Tarrafal? E da tortura dos que praticaram delitos de opinião num país sem opiniões? E da perseguição dos seus antagonistas? E do assassinato de Delgado? E do assassinato do pensamento? E do isolamento do país à informação, à cultura, à mudança, ao debate?

Salazar era católico, dizes tu. Mas tu sabes: isso só por si não confere estatura moral a ninguém, sobretudo se a acção não condiz com teologias de compaixão. Para além disso, todos nós nos temos habituado a que homens de fé tenham praticado alguns dos mais impensáveis crimes humanitários em nome de um deus.

Para além de toda a panóplia de atropelos aos direitos e liberdades dos cidadãos que perseguiu ao longo de décadas, Salazar praticou o crime supremo de silenciar o pensamento de uma nação inteira, e de que até hoje permanecem os efeitos, visíveis no nacional-parolismo, na subsídio-dependência, na elevada permeabilidade à demagogia, na volatilidade dos eleitores. Aliás, até na eleição de Sócrates, que atingiu o paroxismo da fabricação bacoca de um político. Os portugueses desabituaram-se de pensar e habituaram-se apenas a aderir a propostas – o que quer dizer que poucos escolhem e votam em consciência. Este é, parece-me, o efeito mais duradouro e pernicioso da anti-cultura salazarista.

Alonso: não queiras branquear o que foi o Estado Novo ou quem foi Salazar. És livre de lhe apreciares as virtudes que quiseres, mas terás de viver com os factos que as desmentem. Como tu próprio disseste, podes sempre qualificá-las como “mentiras”. Afinal, beauty lies on the eyes of the beholder.

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