Letras tontas
Continua a não haver camas vagas no serviço. E já vamos em Março, vamos quase no fim dele.Quem me ler e for internista sabe, por experiência, que não há doente nenhum que não seja nosso. O que nos enobrece, por um lado, mas nos fatiga muito pelos outros lados todos.
A senhora A, admitida por fractura trocantérica, tem febre. Que faz o dos ossos? Pede observação por medicina interna. Não é com ele: febre não é ossos. Fica com a medicina.
O senhor B, internado por traumatismo da cabeça, fica desorientado ao quinto dia e, detectaram os enfermeiros, começou a saturar abaixo dos 90%. Que faz o especialista da cabeça? Pede uma radiografia, ausculta-o? Não. Pede colaboração de medicina interna. Não é com ele, falta de ar não é dos nervos. Com a medicina fica.
O senhor C, que tem doença má nos intestinos (e espalhada) e, ainda por cima, deixou de obrar, é admitido na medicina interna. O internista pede que o cirurgião ajude e diga, sobre isso, qualquer coisa. O cirurgião vai e diz que é tudo da doença, o que já se desconfiava antes. E fica a olhar para o internista com um olhar igual ao do internista, a esperança toda nos laxantes. E só não pede colaboração de medicina interna porque entre a cirurgia geral e a medicina interna existe a cumplicidade tensa das estações terminais dos comboios todos: cada estação trata dos seus e todas se miram fundo.
Apeadeiros? Não somos: os passageiros vêm sempre deitados, quais apeadeiros? Não.
É por isso que não há vagas no serviço? Não sei.
Limitei-me a descrever duas verdades, decida quem souber se descrevi apenas uma. Ou mesmo nenhuma, que eu sou só internista.
E gosto de cirurgiões: são do mais parecido com um internista que eu já vi num hospital, logo a seguir aos doentes e à família deles.
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