blog caliente.

3.12.06

Esguichos de besugo

Lembro-me dum tempo em que os meus tios de Lisboa vinham por aí acima de primas, passar o Natal.
O meu tio de Lisboa usava gravatas bonitas e gostava de lhes enunciar o preço, à ceia.

A minha tia do Porto também vinha, e vinha de marido - entretanto desfez-se dele, ou ele dela, ou desfez-se o mundo de ambos nessa função interactiva - e, depois, começou a vir de prima, também, e de cada vez que o meu tio de Lisboa iniciava o discurso da carestia da vida, sempre acerca de gravatas ou, mais raramente, de carros bons, ela abespinhava-se e retorquia-lhe coisas de porcelana, peças de cristal austríaco que também adquirira, sabe Deus com que sacrifício, e de quem, coisas provenientes da Vista Alegre e do Tirol.

O meu tio cego, o meu padrinho, que passou a vir de tia e primo e afilhado meu só muito mais tarde, não via mais nada senão o bacalhau e as batatas, e mesmo isso só com as papilas, não se pode ver doutra maneira se se for cego.
O meu outro tio, o mais idoso, o grande tio Zé, o que já morreu, bufava grosso, porque se sabia numa mesa de braço de ferro e era ele, pensava ele, justamente ele, o que era mais forte e poderoso, quem perdia mais naquele jogo desleal, todo feito da intriga das declarações avulsas, brincadeiras de "escondidinhas" apanascadas, coisas de mulheres e de paneleiras adjacências.

Nunca ninguém pensou, ou se pensou não disse, mas acho que ninguém pensou, que o meu Pai, nessas conversas, se morria mais de cada vez, por não ganhar num mês o que bastasse para uma gravata daquelas, para um cristal daqueles, nem em cinco anos para um carro bom, pobre e fraco e lindo Pai, cada vez mais gasto numa luta desigual à mesa da paz.

No fim da ceia, só os de Lisboa e os do Porto não iam à missa do galo. E desdenhavam dos que iam, já de chanatas quentes nas patas rasas de quem fica quente. Sempre quente.
Os que não iam eram os mesmos que, mais tarde, depois de 1974, rezavam o terço no carro, a escutar a Rádio Renascença, ranhando-se com medos duma fuzilaria qualquer que lhes viesse. Nunca veio.

Nunca mais me esquece isto. Lembra-me sempre de Darwin e de meia dúzia de outros répteis que o interpretam mal, bandalhos adaptáveis - sem vergonha - à reptação, porque pensam que é só disso que ali se trata e, por conseguinte, se arrastam o melhor que podem; como quem bailasse.

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