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5.12.06

Esguichos de besugo

Quando o meu avô morreu eu ainda era mais novo do que o meu filho mais velho é agora.

O meu avô teve uma trombose (ou uma hemorragia cerebral? pois é, não havia ainda TAC, nesse tempo) e, depois de alguns meses em estado de degeneração física progressiva, em casa, montado em cama articulada comprada para o efeito, totalmente dependente de quem dele cuidasse, incapaz de falar e dormindo quase sempre, morreu.

Quando o meu avô sentiu o primeiro bafo frio daquilo que o matou, trombose ou hemorragia, eu ainda andava no liceu. E nem sequer pensava em medicinas. Todos os meus tios médicos me diziam "para isso não vás, rapaz, para isso não, tem juízo!", e eu ponderava, mesmo, agronomias. Era um rural, consoante sou, sabia sachar, parecia-me bem assim.
O meu avô começou a morrer uns dias antes de lhe dar aquilo que o matou. Quando sentiu aquele bafo frio que eu não fui capaz de perceber. Foi no Natal, durou até Junho do ano seguinte. Podem achar que isto é mentira, que é enfeite, que é doudice, mas não é, foi mesmo assim.

Estávamos à mesa da saleta, só ele e eu, ele a falar dos tempos do Brasil e das sacas de café que lhe eram pesadas, do Gago Coutinho e do Sacadura Cabral que viu chegar e que aclamou, era ele novo, e eu estava alapado na modorra de o escutar. Não sei onde estavam as outras pessoas, talvez ainda a jantar, ou na cozinha, ou dispersas pela noite fria.
De repente, ele disse uma ou duas frases sem sentido, antes de se calar. Olhei para ele e estava com um esgar esquisito, como se lhe doesse alguma coisa. Cuidei que fosse na cabeça e disse-lhe "Vozinho!" e ele nada, aquilo durou meio minuto, se tanto, e ele ficou normal, outra vez, ou assim me pareceu.

Não falei disso a ninguém, na altura. Depois, sim. Mas na altura não, cuidei ser aquilo coisa de velhote, coisa que se lhe fora conforme lhe viera.

Quase um mês mais tarde, eu estava nas aulas e chamaram-me, encontraram-no agarrado à porta da cocheira, tombado no terreiro, parecendo já morto. Vi-o e o esgar dele era igual ao que eu já conhecia.
Não estava morto, ainda. Morreu só em Junho, morte de certidão.

Às vezes penso que começou a morrer naquele Natal e que eu, em noite de fé, nem fé dei.

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