Sem outro título
O futebol e a vidaA OPINIÃO DE MANUEL ALEGRE
1. Recorro de novo a Sophia e ao seu Fragmento dos Gracos para começar esta crónica: "Os ricos nunca perdem a jogada / Nunca fazem um erro. Espiam / E esperam os erros dos outros (...) / E ganham." Estive a ver o Portugal-França com estes versos na cabeça. Desde que o árbitro assinalou o penalti contra Portugal nunca mais me saíram da cabeça: "Os ricos nunca perdem a jogada / Esperam os erros dos outros." Ficou-me a leve dúvida se o jogo terminaria como no poema. Mas como sempre a poesia acertou. "Os ricos administram os erros dos outros / Apostam na fraqueza dos outros / E ganham." Com a ajuda do árbitro, é certo, que estava lá precisamente para isso, para ajudar os poderosos a tecer "Uma grande rede de estratagemas / Uma grande armadilha invisível", para os ajudar a administrar o erro, se é que foi um erro, do grande defesa que é Ricardo de Carvalho. Eu devia ter mandado este poema ao meu amigo Afonso de Melo para ele o distribuir por toda a equipa, para que cada jogador o decorasse e tivesse sempre presente que os ricos, os poderosos, os senhores da FIFA e o agora patrão Platini tinham lá um árbitro para o estratagema, para a armadilha, para administrar o erro e matar o jogo. E para não se esquecerem que os jogadores da França, o grande Zidane, Thierry Henry e Vieira, que merecem todo o nosso respeito, também sabem isso, no seu subconsciente eles sabem que vestem a camisola de uma selecção que pertence ao clube dos grandes e que os grandes nunca perdem a jogada.
2. E no entanto, desta vez, podiam ter perdido. Mas Deco não estava nos seus dias, Pauleta tem um problema qualquer nestes jogos decisivos, alguns jogadores estavam mais cansados e, já se sabe, os poderosos usam a fragilidade dos outros. Até mesmo Scolari, que fez uma selecção que de certo modo refundou o sentimento nacional, deixou no banco, não sei porquê, o jogador que devia ter jogado nesse dia, Nuno Gomes. Não há dúvida, este poema de Sophia tem de fazer parte do programa da selecção nacional. É preciso decorá-lo, para que da próxima vez, talvez já este sábado, os grandes percam a jogada.
3. Foi bonito ver Zidane cumprimentar e beijar Figo ( segundo a tradição argelina ) antes do jogo. E foi comovente vê-los abraçados e a trocar as camisolas no fim, com Zidane, já com a de Figo vestida, a aplaudir os adeptos portugueses. Estes sim, são os grandes senhores do futebol, os que lhe dão dignidade e beleza.
4. É óbvio que Portugal foi um intruso. O "patinho feio" da FIFA, segundo Scolari, que tem a coragem de dizer o que devia ter sido dito pelo presidente da Federação. O Mundial não se ganha só no campo e fora dele Portugal não risca. É por isso que numa meia-final desta natureza não bastava jogar um pouco melhor do que a França, era preciso jogar duas ou três vezes mais. Isso não aconteceu e foi nessa fragilidade que apostaram os grandes para não perderem o jogo que deviam ter perdido.
5. Jornais ingleses (até o conspícuo Financial Times) e franceses trataram mal a selecção portuguesa. Recorreram à mentira, ao estereótipo, ao insulto e à evocação de um ou outro caso há muito passados. "Nós não somos amados no mundo", dizia-me indignado o meu amigo Vera Jardim. Eu respondi que essas campanhas mostravam que já tínhamos deixado de ser uns coitadinhos. "Somos temidos", disse-lhe eu. E é o que penso. Se se desencadearam desse modo contra nós, revelaram várias coisas: falta de desportivismo e, os ingleses, depois da derrota, mau carácter e mau perder; no caso dos franceses, antes do jogo, medo. O que os media dos grandes mostraram foi isso mesmo: medo do pequeno Portugal e da sua grande selecção de futebol. A medo escreveram, a medo falaram e insultaram, a medo os ingleses perderam, a medo jogaram os franceses e, com ajudas por fora, a medo ganharam. A medo tudo. Sinal de que, pelo menos na selecção, as coisas mudaram. Antigamente éramos nós que tremíamos, agora são os outros.
6. Quem ler as memórias de César, compreende melhor a selecção italiana. A arte da guerra do velho imperador, mais do que nos campos de batalha do nosso tempo, realizou-se com pleno sucesso no modo de jogar da squadra azzurra. Tudo é pensado e ordenado, com inteligência, técnica, uma sábia utilização do tempo e terreno do jogo. Adormecer o adversário, interceptar uma bola, partir em flecha para o contra-ataque. Compactos cá atrás, desdobrando-se harmoniosamente na contra-ofensiva. Não só arte da guerra. Mas também arte poética. A terzza rima, a harmonia e a unidade de Dante, a procura do número 100 ou de uma forma circular. Há um pouco de tudo isso na selecção italiana, talvez a mais consistente, a única que, desde o início, eu não queria no nosso caminho. Portugal, Argentina e Itália foram para mim as três melhores selecções. O seleccionador argentino não quis pôr a orquestra a tocar nos minutos decisivos. Teve medo da sua própria música. Ficou a Itália. A França, mesmo com Zidane, vai passar um mau bocado. Terá que se haver, ao mesmo tempo, com a arte da guerra de César e a arte poética de Dante. O que é terrível. Além disso, há um legionário chamado Gattuso que desde a guerra da Gália ainda não parou de correr. E há Marcelo Lippi e o incrível talento dos jogadores italianos. Parece que estão a defender mas estão sempre a pensar, como o poeta, no "ponto luminoso", ou seja - o golo.
7. "Bastava-lhes espreitar pelo telescópio" exclamou Galileu (excelente encenação de João Lourenço, grande interpretação de Rui Mendes, no Teatro Aberto ), desapontado com os teólogos que se recusavam a ver as evidências. Oxalá os dirigentes federativos não cometam o mesmo erro. Oxalá não se recusem a espreitar, ver e ouvir. E sejam capazes de perceber que tudo mudou e que hoje, acima da clubite, há um clube chamado Portugal, que tem mais adeptos do que qualquer outro. Goste-se ou não, deve-se a Scolari. O melhor que Madaíl fez foi contratá-lo. Deixá-lo sair agora seria abrir de novo as portas ao império do dirigismo medíocre e à apagada e vil tristeza a que a nossa selecção, com Scolari, conseguiu dar a volta.
8. Vicente Jorge Silva já disse o essencial: agora trata-se de saber como agradecer à selecção o que ela fez por nós. E o que ela fez por nós não é pouco: a) revelou-nos que, afinal, neste mundo de globalização e diluição de identidades, ainda há um país, ainda há Portugal e portugueses e que isso não é pecado, é uma festa; b) mostrou-nos que mesmo contra os mais fortes é possível competir, ter ambição e ganhar; c) restituiu ao povo português, sobretudo à sua juventude, uma outra forma de alegria, orgulho nacional, sentimento de partilha e de pertença. Que podemos fazer para lhes agradecer? É difícil e é simples: acreditar como eles acreditaram, ser exigentes em relação a nós próprios, como eles o foram, termos espírito de equipa e de sacrifício, fazermos o nosso trabalho como eles fizeram o deles. Jogarmos na vida como eles jogaram no Mundial. Sem subserviência em relação aos poderosos. Sem cedência à mentira, à batota e ao compadrio. Sem aceitar discriminações e desigualdades. Jogar limpo, como eles jogaram. Com talento, patriotismo e convicção.
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