Culto de quase nada
Sobre as competições futebolísticas em curso, não consegui ainda perceber se o país está pouco esperançoso, dividido sobre as escolhas de Scolari ou apenas ressacado das quase vitórias de 2004. O facto é que não se pressente a sede de folclore de há dois anos atrás, o que, sem deixar de ser um desperdício de um excelente pretexto para iludir as amarguras, sempre nos permite manter o espírito mais próximo da lucidez e das vidas reais.Quando se fala de vidas reais, de duas uma: ou se trata de um evento que, de tão mórbido-sensacional, atrai reportagens perfeitas para horário nobre, ou se trata de colectividades, classes ou grupelhos que cultivam a arte da reivindicação estratégica, na certeza de que, em cada dez exigências do caderno reivindicativo, uma delas seguramente há-de ser atendida.
O insólito acontece quando se sabe de milhares de quase escravos, algures no país profundo, que chegaram a essa condição sem que antes não deixassem de o ser, por submissão meramente incidental. A família de que se fala na reportagem do Expresso é apenas uma de milhares, no Vale do Ave ou em qualquer outro ponto do país, a quem o ganha-pão dos sapatos da Zara que cosem em casa é não só o único meio de subsistência como, também, aquele que lhes serve e basta. Pelo meio desses viveres miseráveis, mas conformados, entram as crianças e os púberes que, por tradição ancestral, devem ajudar os pais como os pais ajudaram os avós - e ajudam tão bem que até mostram ter jeito para o metier. Nenhum é carrasco, claro. Excepto, claro, os execráveis mediadores de Zaras e outros semelhantes. Pequenos empresários, ó sustentáculos da economia nacional, não desesperem. O país está atento, os incentivos vão a caminho. Quarenta cêntimos por sapato é muito dinheiro, se se pensar à escala global.
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