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19.4.06

Pecados

Hoje disseram-me que o meu mal é explicar-me demais.
Fiquei sentido: um tipo, valha-me Deus, ou se explica, ou não se explica. A explicação nunca é demasiada.
Estrebuchei e disse isto, de esguelha, a quem me atirou a frase irritante. Depois, pensei: é verdade.

Eu conto.
O casal era composto de homem, surdo e doente, e de mulher mais nova, com olhos pequeninos. Boa gente. São boa gente, eu sei que são. Mas também são assim, como eu disse.

Quando ele começou os tratamentos, há três meses, eu expliquei-lhes o plano.
Bom, isto agora merece uma espécie de "parêntesis". Isto de planos é fodido, acreditem, porque mesmo que se diga, antes de expôr o plano, que "ele - o plano - está sujeito a alterações que podem depender do doente, da doença, do sucesso ou do insucesso do tratamento, ou, mesmo, da logística" - que é aquilo que mais fode os planos, não sei se sabiam disto, mas é, é a puta da logística -, nunca ninguém está para ligar a essa merda: assumem que "o tipo disse que o plano é este, não quero saber de mais nada, isto é como cozedura de couves em água, vinte minutos e sai sopa; se não sair, quero lá saber que tenha falhado o gás, que as couves fossem merdosas, que a água fosse choca, a culpa é de quem pôs as couves e a água na panela; e mais nada, não quero saber de mais nada, agora já amuei!".

Aqui é que eu, pelos vistos, faço merda. Quando os conheço, quando se me alapam ali à frente, esqueço-me de enfatizar a problemática da alteração de planos, privilegiando o plano itself, tal como se espera (eu e os "planeados") que o plano decorra. E limito-me a colocar como possibilidade aquilo que, depois, quando acontece, aos olhos de quem ouve mal e tem olhos pequeninos, parece que tinha sido, logo de início, mais do que possível, muito provável.
E não é verdade. De facto, era apenas possível. Mas, o facto singelo de não ser verdade, não recoloca as coisas na sua devida dimensão. Nunca mais.

Não adianta berrar aos ouvidos moucos, nem acenar com força aos olhos pequeninos, que "lembram-se, lembram-se que eu disse que isto podia acontecer?" ; não adianta, não resolve nada. Lembram-se, recordam-se, mas nunca mais é a mesma coisa. É como se lhes tivéssemos feito reparar nas letras pequeninas do contrato, que sabem muito bem que existem, que leram, mas que interpretaram como uma espécie de "isto pode acontecer, perfeitamente, mas a mim não".

E a culpa de quem é? É minha.
Eu devia dizer: "o plano é que você, provavelmente, segundo a literatura (e o que eu já vi nesta vida infame), vai perecer algures entre Maio de 2006 e Agosto de 2014. Se quiser, talvez se aproxime mais de Agosto de 2014 - talvez, repare, talvez!, repare que eu estou a dizer que você está fodido na mesma e, quase de certeza, depois de amanhã, percebe? - se fizer uns tratamentos que podem correr mal ou bem, que isto é mais ou menos ao calhar".

Perante um plano destes, raios me partam, eu dava logo uma cacetada no proponente. Era logo, que isto não é um plano de jeito, é um "pega lá e embrulha, que isto não é comigo, é contigo: se queres, queres, se não queres, a joder, vai a outro lado".

Mas há alturas em que eu preferia ter tido este discurso lodoso, logo dirigido a condenados, do que ter assumido com eles (ou por eles?) a esperançosa dúvida. Há momentos longos em que eu preferia levar uma cacetada na pinha, desferida bem no alto da minha caixa córnea, do que assistir, por ser estúpido, a amuos de gajos tristes, moucos e doentes, ladeados de mulher de olhos pequenos e tristes, sempre tristes os olhos, ambos defraudados pela sorte, mas olhando-me e ouvindo-me como se eu fosse a sorte-má, como se fosse o tipo que, verdadeiramente, os defraudou, o sacana que lhes preencheu mal o papelucho do euro-milhões que cuidavam premiado.

Eu peco por não lhes dizer, desde logo, que o jogo está um bocadito viciado. Mas é para eles sentirem vontade de jogar e de tentarem ganhar, em lugar de perderem logo, de se deixarem afundar sem sairem do porto. Eles pecam porque pensam que sou eu que controlo e vicio a puta da roleta, dono de marés.

São maus pensares. Pecados por bem, que aleijam no pescoço e que derreiam. Amesquinham toda a gente. Isto aprende-se, mas custa.

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