blog caliente.

19.4.06

Da venda de calçado

Havia (e há) um dono de sapataria, na minha terra, que colocou na montra, em lugar de destaque, cuido que entre umas botas de vaqueiro e umas sandálias, uns dizeres que me fizeram sorrir, na altura. E já lá vão uns lustros, pelo menos quatro. Rezavam assim: "aceito críticas de quem faça melhor, não de quem saiba muito".

Claro que isto não passa duma lógica de sapataria. O simpático lojista da minha terra tinha, da crítica, uma ideia de "coisa malévola, de invejosos, arremessada à falsa fé a quem faz pela vida". E não é nada disso, a crítica. A crítica é, pelos vistos, isto tudo e mais a bibliografia.

Eu não sei é de muitos casos em que uma crítica tenha ganho forma de livro inteiro, empoleirando-se, depois, ufana, nas estantes duma livraria ou dum hipermercado, prateleiras-meias com o produto criticado, como que disputando-lhe primazias de aquisição.
Sei de polémicas violentas, sei de desagravos em artigos de jornais, conheço correspondências de virulência invulgar, sei de Eça e de Pinheiro Chagas (com Bulhão Pato pelo meio, cuidando-se Alencar), sei de Eça e de Camilo ("provavelmente, o homem que mais palavras sabe do dicionário", afirmou, do romântico caceteiro, o dispéptico poveiro), sei mais algumas coisas. Admito que poucas.

O que não sabia - fiquei a saber agora - é que a crítica literária deve, além de (humildemente)"assentar em bases epistemológicas e metodológicas muito frágeis", elevar-se nos biquinhos dos pés mimosos e sensíveis, deslizando por esses palcos afora, em pontas, armada em vaporosa bailarina sem fragilidades nos artelhos... ostentando preço competitivo no tulezinho da capa.
Pensava eu que a crítica, assim, calçava chanatas e ficava com um ar chula, um bocadito derramada de vergonha. Mas não, pelos vistos não: é assim que a crítica cuida bailar melhor, embora um bocadinho aos tropeções.

Nem quero imaginar o que diria, sobre tudo isto, o meu conhecido da velha sapataria da Rua Serpa Pinto. Provavelmente, encolheria os ombros. Como quem afirmasse "lá está, besugo, que mais queres?, deixa ficar o letreiro na montra: isso que me contas é, apenas, o que já lá está".

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