Da venda de calçado
Havia (e há) um dono de sapataria, na minha terra, que colocou na montra, em lugar de destaque, cuido que entre umas botas de vaqueiro e umas sandálias, uns dizeres que me fizeram sorrir, na altura. E já lá vão uns lustros, pelo menos quatro. Rezavam assim: "aceito críticas de quem faça melhor, não de quem saiba muito".Claro que isto não passa duma lógica de sapataria. O simpático lojista da minha terra tinha, da crítica, uma ideia de "coisa malévola, de invejosos, arremessada à falsa fé a quem faz pela vida". E não é nada disso, a crítica. A crítica é, pelos vistos, isto tudo e mais a bibliografia.
Eu não sei é de muitos casos em que uma crítica tenha ganho forma de livro inteiro, empoleirando-se, depois, ufana, nas estantes duma livraria ou dum hipermercado, prateleiras-meias com o produto criticado, como que disputando-lhe primazias de aquisição.
Sei de polémicas violentas, sei de desagravos em artigos de jornais, conheço correspondências de virulência invulgar, sei de Eça e de Pinheiro Chagas (com Bulhão Pato pelo meio, cuidando-se Alencar), sei de Eça e de Camilo ("provavelmente, o homem que mais palavras sabe do dicionário", afirmou, do romântico caceteiro, o dispéptico poveiro), sei mais algumas coisas. Admito que poucas.
O que não sabia - fiquei a saber agora - é que a crítica literária deve, além de (humildemente)"assentar em bases epistemológicas e metodológicas muito frágeis", elevar-se nos biquinhos dos pés mimosos e sensíveis, deslizando por esses palcos afora, em pontas, armada em vaporosa bailarina sem fragilidades nos artelhos... ostentando preço competitivo no tulezinho da capa.
Pensava eu que a crítica, assim, calçava chanatas e ficava com um ar chula, um bocadito derramada de vergonha. Mas não, pelos vistos não: é assim que a crítica cuida bailar melhor, embora um bocadinho aos tropeções.
Nem quero imaginar o que diria, sobre tudo isto, o meu conhecido da velha sapataria da Rua Serpa Pinto. Provavelmente, encolheria os ombros. Como quem afirmasse "lá está, besugo, que mais queres?, deixa ficar o letreiro na montra: isso que me contas é, apenas, o que já lá está".
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