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19.2.06

Pequena carta às pessoas de quem gosto, mesmo que não gostem de mim

Um homem italiano matou parte da família e matou-se, a seguir. Acusou-se, em bilhete final, de falta de cuidado e puniu-se, a ele e aos seres que cuidou não poderem sobreviver à sua culpa, em conformidade com o tamanho do seu pecado, visto por si.

Era maluco.

Não se matou porque vivemos tempos de vigilância e espionagem de nós.
Nem porque nos sentimos cada vez mais vulneráveis - debaixo do vidrinho frágil da nossa evolução desajustada ao nosso lugar - às ameaças que não dominamos e que sempre existiram, iguais ou parecidas, alheias aos nossos anseios de imortalidade, saúde como direito (e não como condição de quem é saudável), dinheiro e sucesso.
Não foi porque sentiu que andamos, à custa não sei de que ideia nova, que não está escrita em livro nenhum, muito menos por ninguém de juízo, a fazer de conta que somos, todos os dias, os juízes e os polícias de serviço dos outros, numa escalada justiceira que irá encontrar-se, qual recta traçada com "efeito" esquisito de quem a iniciou, com a outra recta, a das "regras do mercado".
Também não foi porque deu fé que, neste caso, era ele o bandido, conforme daria fé se fosse outro qualquer.
Nem foi por ter percebido que, da próxima, o culpado será outro, acreditando -nesse caso - que essoutro faria o mesmo, ou que alguém lhe faria o mesmo, a essoutro, por ter falhado.
Nem por pressentir, coitado, que esta cadeia da culpa, esta cultura da penitência como antítese do prémo, lhe era mais penosa que a própria pandemia que parece estar eminente.
Nem sequer por ter ideia de ser, evidentemente, num mundo de "procuradores gerais", mais culpado que o próprio culpado. Sim, que o culpado é o vírus (não este, o que há-de vir depois deste, que há-de minar-nos o corpo, depois de nos consumir a alma). O vírus e o nosso medo de morrermos da forma mais ignóbil que há: às asas dum pássaro pequeno e doente.

Não. Claro que não se matou por nada disto.
Matou-se por ser maluco.
Não brinquem comigo, sim?

Vai correr tudo bem, sobretudo se mantivermos expectativas razoáveis à nossa dimensão; e a perfeita noção de que a nossa vulnerabilidade e a nossa força são variáveis equivalentes numa equação antiga que, porque somos tontos, cuidamos ser nova. Não é nada nova. É a mesma equação do costume, com as mesmas variáveis dependentes (de nós), agora com uma incógnita estranha, porque não foi introduzida por nós, mas estranha só por isso. Como estranhas são as outras todas, as incógnitas mais antigas e as que hão-de vir, mas não nos parece tanto que são estranhas porque nos parece que já as entendemos. E não sei se as entendemos: penso que não, que apenas "já passaram". Como esta vai passar, entendamo-la ou não.

Vai correr tudo bem. Eu sei. Confiem em mim, que também sou maluco.

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