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16.11.05

O culto nacional da doença

A medida parece honesta, a intenção é meritória. Só me questiono como se põe em prática. Se é certo que a sintomatologia associada a uma diarreia é do domínio do senso comum, já não será assim, fácil, para o comum mortal, traçar a (quiçá, ténue) linha de fronteira entre uma simples diarreia e uma epopeica desinteria. O que dizer, por outro lado, de uma forte dor de cabeça? Radicará a cefaleia em causas tão prosaicas como a excessiva desbunda da noite anterior ou poderá ser sintoma de um aneurisma incógnito?

O problema é justamente este. O frágil (e doente) mortal, na pele de utente, não sabe aferir o grau de gravidade e de risco do mal que o aflige. Não sabe e nem quer saber, aliás. Acrescente-se a circunstância, bem mais determinante e motivadora, do prazer mórbido que se retira da ida à urgência. Aquilo é um vai e vém de feridos e estropiados. Os pouco doentes entretêm-se, enquanto aguardam atendimento, a espreitar os muito doentes - os politraumatizados, os moribundos e, até, os definitivamente mortos. E a carpi-los, sempre enquanto esperam. E há o sangue, há muito ensanguentamento. É uma espécie sinistra de terapia, enfim, por observação. E com a faculdade de, querendo, descarregar eventuais humilhações e ressabiamentos numa catártica reclamação, que se quer verbal e em voz audível para a plateia.

Atentas as visíveis vantagens, o utente não se coibirá de se plantar horas infindas numa urgência hospitalar com o fito de solicitar cuidados médicos para uma unha encravada, só porque corre o risco de pagar mais. Até porque confia lhe chegará, como deseja, o dia glorioso em que regressará ao lar triunfante, sabendo-se portador de doença ou trauma idóneo que suscitou verdadeiro e próprio tratamento de emergência. Enquanto esse dia não chega, insistirá sempre.

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