blog caliente.

15.11.05

A mudez

As insuficiências de Cavaco Silva, que são muitas, não residem no seu parco passado político - que se resume aos propalados dez anos de experiência governativa, em que se limitou a gerir um orçamento desafogado com pulso de ferro e postura de autocrata. Nem, tampouco, na ausência de passado anti-fascista ou de intervenção política (área em que qualquer outro dos candidatos está a anos luz de Cavaco Silva), já que, mais tarde ou mais cedo, as novas gerações produzirão candidatos, derrotados ou ganhadores, cuja memória do Estado Novo será semelhante à que hoje temos do Marquês de Pombal. Na verdade, nenhuma destas referência curriculares legitima mais um cidadão do que outro para ser presidente da República.

O que legitima um candidato que aspire e possa ser presidente da República é, antes de mais, a sua capacidade de percepção e de intervenção social. Essa capacidade, por seu lado, não pode ser presumida através de um percurso académico brilhante ou de uma (eventual) tenacidade que antes o caracterizou, quando em funções executivas. Ela tem de ser presente, actual; tem de ser coexistente e intrínseca ao sujeito. Tem de ser visível. Ora, em Cavaco Silva, ou só se vêm números ou só se vêem chavões. Ou "vontade de ajudar", ele não se cansa de dizer que quer ajudar.

Cavaco Silva não possui um discurso político, muito menos possui um discurso social. É um traço do seu carácter, a imunidade à dimensão humana, que nunca cultivou fora do culto da família feliz e protectora; e ninguém pode ir contra a sua natureza. O mundo, para Cavaco Silva, são finanças. Não lhe interessam a arte ou os livros, a menos que lhes consiga alcançar vantagem macroeconómica. E a maneira como gagueja "não sou dono dos votos dos portugueses" está longe de ser uma manifestação de arrogância; antes é a mais profunda e transparente prova da sua obtusa candura de acreditar, com pia convicção, que o país e os portugueses precisam dele.

Ora, um presidente assim desonra-nos, porque nos estreita o futuro. Um presidente da República cujas características relevantes - e únicas - se reconduzem à sua indesmentível honestidade e à sua provável boa fé de nada nos serve. Na sua pior vertente, a da beatífica determinação (a tal tenacidade que, afinal, não passa de convicção do tipo autista), tornar-nos-á mais infelizes. Há portugueses que lhe admiram o modo de vida austero e probo, como o que imaginamos a um chefe de repartição. E há, também, os portugueses informados e pensadores, que fazem parte da tal oligarquia que tudo faz mexer, que o apoiam e lhe auspiciam a vitória em Janeiro. A probabilidade da vitória aumentar-lhe-á a mudez. Isso é certo.

View blog authority