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31.7.05

Dialectos: Lxbôa

Tenho seguido divertido e com interesse o que Vital Moreira vem escrevendo sobre o "lisboetês".

O "lisboetês" é um dialecto não oficial que, cuida quem o utiliza, é, fundamentalmente, chic.
Não é usado, apenas, por lisboetas. Várias pessoas se sentem atraídas, de forma fatal - quando não de forma fatela - pelo dialecto. Eu conheço algumas. Em situação que cuidam de alguma relevância, essas pessoas assumem o "lisboetês" como fonética preferencial. São, geralmente, jovens que se transformam em "xovens", ou menos jovens que se catapultam à relevante posição de "tíus". É como um "ríu" que corresse para o mar das "grandexensações". Entendem? Bom, os de Caxcaish entenderão melhor, presumo.

Isto passa-se, mesmo, com alguns nativos de Vila Pouca de Aguiar, ou de Murça, quando em contacto com seres que consideram superiores, mesmo que seja por habitarem as zonas limítrofes de Chelas. Lê-se "Chêlas".

Em tempos que já lá vão, convivi com duas primas que falavam "lisboetês" convicto. E ainda falam, presumo. Mas assumiam, além dessa, uma outra vantagem na sua esmagadora dimensão comunicativa: frequentavam o Liceu Francês Charles Lepierre, o que lhes fornecia, ao "lisboetês", como que um sufrágio santo de "internacionalidade".
Internacional é o que, em Portugal, se chama aos estrangeiros: um estrangeiro, seja cançonetista ou mimo, é quase sempre uma atracção internacional. Já repararam? Mesmo que seja apenas um inglês de Birmingham, ou um francês do Limousin, é um internacional que ali temos. Mais, mesmo, que um "tipo de fora", um estrangeiro. Claro que se o tipo trabalhar nas obras é estrangeiro mesmo. Nas obras trabalham "monhês", "prêtx", ou "'cranianx", que as vogais do fim e do princípio são para comer. Há muita fome escondida, geralmente, nos adeptos do "lisboetês".

Lembro-me de, por essa altura antiga, com nove tenros e retorcidos anos, já me enervar que me gozassem por abrir os "entes", como em "doentes" e "dentes", e por abrir bem as outras vogais que me ensinaram a abrir. Como em Corgo, por exemplo, que o rio chama-se Corgo, não se chama "Côrgo". E, este era o supremo gozo que levava sempre, este era fatal, por meter a partícula de ligação "i" entre palavras que terminassem (a primeira) e começassem (a segunda) pela letra "a". Como em "límpida água", que me saía (e me sai) sempre "límpidaiágua".

Explicar isto a alguém de Vila Pouca, ou mesmo de Fornelos, que frequente sítios "in", como "pàdóques do Estoril", já é difícil. Explicá-lo a duas moças da Linha que, ainda por cima, frequentavam escolas estrangeiras (com um péssimo resultado no que respeita ao português, evidentemente: a minha Mãe, que era professora, tinha de lhes dar explicações da Língua Pátria, nas férias durienses, porque davam muitos erros em qualquer ditado), resultou impossível.

Já pelos doze anos, quando o buço começa a ornamentar-nos a região supra-labial, escurecendo-a, perdemos-lhes o respeito de vez. Elas vêm de cima para baixo, a gente desfere-lhes cabeçadas de baixo para cima.
Lembro-me da discussão acesa que tivemos, um dia, no carro do pai delas, a caminho de Lisboa. Eu ia num estado lastimável de opressão porque, na altura, a simples visão dos bairros miseráveis de Sacavém e dos Olivais - na sua altitude macabra e esmagadora, para quem ia das berças do profundo Norte- me metia respeito. Caramba: arranha-céus!

No entanto, durante a viagem, as duas resolveram brincar comigo e com a minha ignorância parola de reguense, lavado mas dado a sossegos. Quiseram obrigar-me a dizer Lille, Cannes, Marseille e (pasme-se) Lens.
Eu disse "Lile", "Cánes", "Marselha" e "Lans". Como em "lãs".

Foi uma risota que se estendeu até à frente da viatura, até o motor pareceu esganar-se na delícia da minha humilhação. Explicaram-me tudo, as cabras, até "Marrecei-eh" me explicaram!

Encontrado assim, tão só, no primeiro banco de trás da minha vida, fora dos meus e do meu sossego, cresceu-me a pequena revolta dos pobres que não têm quem lhes valha e têm, nessa ausência de conforto, de se valer de si. O que faz um buço, meu Deus.
Picado nos meus brios de duriense já, praticamente, "sub-pentêlhico", desenrasquei-me. Lembrei-me, graças a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, que as cabras diziam "Paris", como eu dizia. E fodi-as pela primeira vez, tenho a certeza, embora, sendo elas de Lisboa, estas certezas nunca se possuam em definitivo:
- Olhai: explicai-me lá, então, porque dizeis Paris. Não deveríeis vós dizer "Pàrri", ó inenarráveis putas?

O carro seguiu, em marcha lenta e abafada pelo silêncio (que me oprimiu, a mim, mais que a ninguém), até Algés. Que se diz "Algêsh", para quem não sabe.

É que eu, do resto da frase toda, não me lembro bem. Podem ter-me saído outras palavras. Sei lá o que lhes disse! Sei-lhe é o sentido, à frase inteira.
E recordo, sem dúvida nenhuma, a violência daquele "putas", que aqui na Régua se diz "poutas!", quando o parimos com merecida raiva.
Faz efeito, ao menos: cria silêncios opressivos mas pacificadores.

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