Sobre presidentes
Em Ponta Delgada ia sempre a pé para o hospital. Descia do meu sótão, posto de vigia da rua António José de Almeida, sempre ladrilhada e húmida, passava pela florista do rés-do-chão com um sorriso calmo e subia os vinte metros que me faltavam, sempre, para a Machado dos Santos. Ia por ela fora, todos os dias, perto das nove horas. Quando desaguava os passos no campo de São Francisco, antes de ver o mar, o coreto, o hospital, vi muitas vezes o Dr. Mota Amaral a encaminhar-se, austero mas simpático, para as suas orações matinais à sombra tutelar do Santo Cristo.
Mota Amaral saudava sempre. Era simpático. As pessoas gostavam dele, mesmo os que lhe chamavam, num chasco quase surdo, João Bosco. Alguns separatistas antigos, alguns aparelhistas locais menos felizes, não sei.
Vivi, atento, a campanha eleitoral das eleições regionais, aquelas em que se candidatou, pelo PS, Martins Goulart, irmão do outro Goulart que me ensinou a meter cateteres venosos centrais. Há-de estar na Horta, era de lá.
Mota Amaral referia-se a Goulart como "esse cetáceo que aí veio", aludindo à formação académica, feita nos Estados Unidos, do seu adversário político. Mas fazia-o, sempre, com respeito. Sem ranger de dentes.
Nessa campanha, não se rasgou um cartaz nas ruas de Ponta Delgada. Provavelmente antecipando, já, o advento de Carlos César, (ad)ventos de mudança.
Mesmo assim. Parecia no fim dum tempo, São Miguel. E via-se ali a civilidade de quem se empresta à mudança por dela ter vontade. Ou porque tinha de ser. E há-de ser assim quando a mudança se impuser, de novo, se calhar.
Sei que os Açores não são a Madeira, ainda bem. Há ilhas e monturos vendáveis. Sei que Mota Amaral não foi, nem será nunca, um Jardim prepotente de sebo maninho.
E sei que foi nesse tempo que vi ao perto, pela primeira vez, um Presidente da República. E que ele me saudou, educadamente, como fazia aos outros todos que lhe cruzavam o caminho devoto. Consta que, depois das orações, ia nadar para a Calheta, nunca o vi lá. Mas dizia-se isto, calmamente, como se entoam as normalidades, mesmo as superiores.
Não sei se me fiz entender, mas talvez não. Acontece-me muito, culpa minha.
(a fotografia, mal tirada, é do meu quintal; trouxe os Açores comigo e fiquei lá, um bocadinho de ambas as parvoíces).
<< Home