A praia do sossego
José Barroso interveio claramente. Enfim, pelo menos se, como a peça do noticiário da 2 parecia indicar, o nosso antigo Durão falou após o inflamado discurso daquele senhor que falava francês e clamava por uma discussão qualquer. Aquele que interpelou, veementemente, francofonamente, Blair. O Toni.Disse Barroso, que quase se irrompeu, num inglês que soou tão meloso como o seu português (e isto é mais grave, o homem enjoa sempre, mas a falar português consegue mexer mais com a peristalsis esofágica), que vamos ter de repensar esta questão da Europa (a Europa é uma questão, pelos vistos; não é, e isso já sabíamos, uma resposta) mas, muita atenção, "nem pensar nisso de agora ser um fartar vilanagem, de colocar tudo em causa!".
Barroso, que se anafa diariamente e parece, em cada dia que passa, mais aganado no seu fatinho curto de grosso e nos olhitos semicerrados de cevado, disse qualquer coisa que misturava "valores" e "ambição". Não cito, não estou para me maçar com detalhes de bolota, mas era à volta disto. Eu, isto, sei. É a mistura fina darwiniana. Há quem faça cafés com isto.
Na boca, nos olhos quase xantelásmicos, na papada, nos ombros, no parlamento inteiro de Durão, pressente-se uma mistura rançosa de quem pede Grande Guerra. Se vai ser Mundial ou só Civil, veremos. Depende de como os deixarmos mexer na Europa, deixá-la assim ou tentar uni-la pelos "valores ambiciosos". Mas será Grande. E nós vamos deixar, que deixar é nossa sina.
Barroso é, na minha opinião, um homem ridículo. Os homens espertos e (mais ou menos) poderosos podem ser tão ridículos como os outros todos. Isto confere-lhes adicional potencial de mofa? Não. E de respeito acrescido? Também não. É uma referência, de passagem, de besugo em trânsito.
Em África, em Angola, morre-se de paludismos, cancros e cirroses. Como cá, como em toda a parte, mas em condições inomináveis, de calores húmidos de insectos moles. A morte de todas as fomes.
Enfermeiros a dar à bomba, águas salobras, fomes que deviam matar-nos a todos de vergonha, tudo colorido em reportagens que, depois de mostrarem a "fealdade feia" da pobreza total, nos mostram a "mesquinhez giraça" da pobreza global: uma miúda de trancinhas estrogénicas a dizer que não tem onde se divertir. Vai, Nokkia! Ou vai lá tu, Sony! Dai-lhe um telemóvel, à miúda! Dai-lhe uma rede, um pacote de SMS, a miúda quer diversão, é dar-lha.
Contraponto mal feito, os valores e a mais-valia. O mais valia calarem-se a ficar cada vez mais ensurdecedor.
Um tipo com ar de lunático, noutro trabalho avulso, refere (sobre Guantanamo) que pode haver médicos a traçar planos de interrogatório, como fazia a PIDE. Como sempre se fez e como se fará sempre, onde houver homens com poder de prender, interrogar e seviciar outros. Isto é grave? É. Se for verdade, é. Mas é assim. Não é grave por ser assim, é grave por ser sempre assim e por ir ser sempre assim. É a gravidade inevitável da inevitabilidade. Lei de besugo.
O mundo é muito grande, mas não é grande coisa. Hoje, até por coisas que soube ontem e que não vêm ao caso, são íntimas, são coisas que não sendo nossas são de gente tão nossa que a gente as sente nas carnes, hoje, dizia eu, pensei um cisco na gente que se mata. Admirei-me. Profunda angústia teológica, esta angústia da decisão apenas auto-flageladora. Que faz com que quem se mata com raiva dos outros, por raiva dos outros, por raiva de si e dos outros, por raiva dos outros por si, decida, quase sempre, fazê-lo (matar-se) sossegadamente.
Leio mal, sei pouco, mas afigura-se-me isto mais certeiro do que trovoada em Maio: cada vez mais, um dia atrás do outro, quem decidir matar-se, vai levar consigo quem resolver que não quer que cá fique, contente da sua falta. Será o liberalismo levado ao extremo. Como já se faz, um bocadinho, no mundo árabe: o exercício da última liberdade pode ser extremamente lixado, fora dos tais valores antigos que, hoje, nestes tempos modernos, parecem quase incompatíveis com a ambição.
Ambição de quê? Isso não sei. A ambição tornou-se mais do que um substantivo comum, passou a ser um verbo conjugado na primeira pessoa, não sei se só no singular, mas sempre na primeira pessoa.
Responde, Nokkia. Tu também, Toshiba. E tu, Gatesworld of magic! Ambição de quê? Para quê? Por quem? Para quem? Só para quem se masturba nos contrastes, para quem legitima na miséria dos outros o seu sucesso? Porque "não foram capazes, pobres diabos?".
Não, vocês preparam-se é para mostrar isso, cada vez mais, em directo. Se for possível. Não é, rapaziada? Não é?
É.
Boas vendas, malta.
Eu vou descansar dois dias, num mar ali ao norte, que já nem eu me aturo. E se morrer no mar foi ele que me levou, deixai-me estar lá sossegado, mais besugo menos besugo, mais vale no mar que num prato ladeiro.
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