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9.2.05

Ilhas

Ontem à noite revi o Veiga, a Ana, o Fifer, a Cristina, a Fátima, o Nuno, a Zélia, o Fernando, a Teresa e o Rui, mais uns poucos de quem já nem sei o nome. O Esteves, o uruguaio, mais velho um bocadinho!
Foi numa velha cassette VHS, com dezasseis anos. Ainda dá todinha, com som e tudo. Encontrei-a nos despojos da última mudança.
Estávamos todos de calções, era a "Festa do Calção", em casa da Ana e da Cristina. Em Ponta Delgada. Em 1989. Março.

Éramos os médicos novos do velho Hospital, ali no Campo de S. Francisco. Éramos, pelo menos, grande parte deles. Éramos principiantes, é certo. Mas orgulhávamo-nos de nós porque todos os dias encontrávamos motivos para isso. Éramos menos exigentes connosco sem sequer saber porquê. Fazíamos o que tínhamos a fazer, o que sabíamos, porque também não havia muito mais gente que soubesse mais que nós.
Mentira: éramos exigentes connosco. Éramos, isso sim, por outro lado, mais tolerantes connosco. É isto. E os outros pareciam gostar mais de nós. Seríamos, talvez, mais belos. Ou, então, eram os outros. Deixemos isto pairar nas brumas de São Miguel até ao fim dos tempos, pouco importa.

Lembro-me de coser todos os tendões dum flexor comum, uma vez, com a Graça: um interno do primeiro ano de Medicina com uma interna do primeiro ano de Ortopedia, durante 3 horas, a coser um tipo que estava ali por via duma motosserra: ficou bem, mexia tudo, meses depois. Foi sorte. E foi arte. Não tenho dúvidas. Nunca tínhamos feito aquilo, mas não havia mais ninguém que fizesse. Decidir era fácil, portanto. Não era suposto mandar toda a gente de avião para Lisboa, percebem? Naquela altura não era. Eram outros tempos, chegava-se tarde a casa mas parecia tudo um sonho em que a gente crescia, todos os dias o mesmo sonho.

E havia os momentos de lazer, em que tudo se diluia nos sorrisos, nas cantigas, nas histórias. Esqueciámos as chamadas nocturnas à Unidade Coronária, de livro debaixo do braço, a ver se a confiança vinha connosco escada acima... era nos "quatrocentos", a Unidade, lembro-me bem. Casos difíceis para quem se apalpava, ainda, com o entusiasmo pueril de se descobrir e de ser útil, eficaz, certeiro, sem pensar que arriscava a pele e o futuro na assunção clara da sua voluntariosa ignorância.

Ao rever as imagens de mim, ainda sem nenhuma cã na "palha d'aço", reparei que me ria mais que hoje. E mais a despropósito. Reparei que tínhamos todos uma expressão de quem começa, de quem se testa, de quem está longe de casa mas em casa. A casa deve ser sempre o sítio onde nos sentimos como quem começa, ou recomeça. E é por nos sentirmos em casa que nos rimos, sem cuidar se o propósito é daqueles muito grandes ou, apenas, uma cócega só nossa.

Reparei que os meus filhos, que viram comigo o pai que eu, na altura, ainda não era, gostaram de me ver.

Do Veiga, da Teresa, do Rui, da Ana... de quase todos os outros, açorianos de graça ou por empréstimo, nunca mais soube. Nada, mesmo nada. Pecados de quem se afasta dos outros com a inocência estúpida de quem vai à vida pensando voltar. E nunca volta, só quando se lembra.

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