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11.2.05

Como se pescam anchovas

Sejamos pedagógicos, como se fôssemos intensivistas. São os médicos mais inteligentes que há, os intensivistas, porque eles assim o dizem e porque têm tempo para o dizer. E, às tantas, porque o são mesmo. Nem sempre a inteligência se mede por padrões universais.

Sejamos, então, por items. E, sobretudo, sejamos pedagógicos. Foi assim que comecei e sinto em mim, no que me resta de hoje, vocação lectiva.

1 - Vai-se, de noite, para a doca de Ponta Delgada.
2 - Leva-se cana para pescar sargos. E cigarros.
3 - E anzol.
4- Como isco, pão de segunda e lombo de porco. Bocados de "lagarto", aquela parte tenra que envolve a coluna vertebral do suíno.
5 - Atira-se aquilo, com força, para o mais longe do mar que se consegue.
6 - Espera-se, cigarro aceso a fumegar na bruma cinzenta, e conversa-se sobre a lua que está alta e sobre "lá estamos nós, aqui".
7 - Acendem-se mais cigarros e começa a apetecer ter trazido um "kispo" qualquer.
8 - Manda-se alguém ir a casa buscar um "kispo". Já agora, dois.
9 - Discute-se, enquanto se espera pelos "kispos", a etimologia de "kispo". E questiona-se a validade do nome "kispo" atribuído a qualquer blusão que seja quente.
10 - Alguém vai mijar e o outro que lhe segure a cana. Enquanto vai, seus súcubos!
11 - Quem fica a segurar a cana do outro (sacanas, não tergiversem, ouviram!?) ouve ambas as canas sussurrarem, baixinho, uma para o carreto da outra, que "bem podíeis ir mijar os dois que a gente bem ficava".
12 - O que foi aliviar-se regressa, abotoando-se (detesto zippers) e pergunta, jovial, "então, já deu"?
13 - O que ficou dirige-lhe uma imprecação friorenta e de elevada violência verbal. Um verbo transitivo qualquer.
14- Chegam os "kispos". Agora vai.
15 - Esticão na linha dum dos pescadores, não importa qual.
16 - "C******! Dá-lhe linha!". Diz o outro, não importa qual.
17 - Ambos puxam e dão linha, consoante a febre do momento. É a vida, a filosofia verdadeira da verdadeira vida, esta combinação empírica de dar linha e ir puxando.
18- Violento esticão.
19 - Uma anchova comeu o raio do sargo que era nosso. E aliviou a pressão, levando-o nas mandíbulas. Uma risada doida varreu a doca. Desce na bruma uma violenta vontade de epitetar a anchova.
20 - "Puta!"
21 - "Cala-te, não epitetes mais a anchova e dá-me o isqueiro".
22 - "Está ao pé do lagarto. Dá-me daí outro anzol, chumbo e mais isco. São 4 e meia, isto hoje dá, vais ver!"
23 - "Pois, para as anchovas promete. Agora mijo eu, cala-te um bocado e segura aqui!".

É assim que se elabora um texto científico, para quem não sabia. Põe-se um número antes duma verdade e ela reforça-se na ordenação numérica, parece que é tudo pensado e, inevitavelmente, para sempre, assim.

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