O último doutor da Régua
Gosto de ler outros blogues. Gosto muito.Há um ano fazia-o à sorte, conforme calhava. Lia os mais conhecidos e, depois, carregava nos links que eles lá tinham e ia descobrindo outros. E outros. Ainda gosto de fazer isso, acho que hei-de gostar sempre, mas há uma centena (pelo menos) de blogues que não passa uma semana que os não espreite.
Não me regulo por dicotomias, nas minhas escolhas. Não estabeleço uma separação entre "escritos de esquerda" e "escritos de direita". Nunca sei muito bem quem são os "bons" e os "maus". Às vezes penso que sei e surpreendo-me, logo a seguir, na negação da minha descoberta. Gosto de ler, sobretudo, ao acaso. Um acaso que é, mesmo, variável.
Pelo menos dois blogues se referiram a João de Araújo Correia. É meu conterrâneo, conheci-o e frequentei-lhe a casa na minha meninice, fiquei surpreendido pelas referências que lhe foram feitas. Sobretudo porque não são frequentes, essas referências, que eu tenha conhecimento. Não é um autor de "Selectas Literárias", mas era um muito bom escritor. Fico comovido porque conheço grande parte da sua obra e ler sobre o "meu particular autor" é (um bocadito) como se lesse sobre mim. Não é bem, mas pronto.
Era um médico antigo. Foi, talvez , o último doutor da Régua. Um médico que tinha consultório em casa, uma casa recolhida, antiga e cheia de "brique-à-braque", com um pequeno jardim donde se avistava o Douro e muitas árvores e flores em volta duma mesa redonda, de pedra. Havia um silêncio religioso quando ele entrava na sala das lições de piano que a Dona Mariana (a irmã) nos dava, como se os nossos pequeninos corpos sossegassem diante da grandeza que nos vinha ali observar, arguta e amigavelmente.
Usava boina, muitas vezes. E estava muitas vezes de "robe de chambre", daqueles de seda e folhagens estampadas, lembro-me de um que era "bordeaux". Fazia inúmeras consultas de graça. Em casa ou fora dela. Ralhava muito. Noutras vezes, calmava as gentes. Receitava caldos e dava conselhos práticos, entre comprimidos e injecções. Tinha uma maneira de fazer afirmações entremeadas de interrogações que lhe era tão peculiar que a gente brincava com ela, sempre que ele desandava da nossa pequenez. Escrevia as receitas numa máquina de escrever, antecipando (respeitosamente) as dificuldades que letra de médico pode causar nas farmácias.
Foi muito bom ler sobre João de Araújo Correia no Nova Frente e no Último Reduto. Como eu dizia atrás, as coisas que nos tocam lêem-se onde foram escritas, não escolhemos as cores nem os credos de quem escreve o que nos toca. Muitas vezes, nem sequer conseguimos escolher quem nos toca. O que é bom, obriga-nos a ser humildes nos nossos orgulhos, duvidosos nas nossas certezas.
É preciso ler sem medos, independentemente dos rótulos que sabemos apostos às leituras que fazemos, para não perdermos coisas boas. É não ligar aos rótulos, que não colocámos, e ler. Ler é bom. E ouvir também.
Por exemplo: eu também gostei de ouvir o Dr. Louçã, ontem. Isto é assim tão mau? Faz de mim um simplório, em vez de um simples?
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