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26.7.04

Eles e nós

Vivemos um tempo de mudanças. Todos os tempos o são, mas entendam: isso depende muito do "nosso tempo".

Numa crónica antiga, já com alguns anos, lembro-me que Miguel Esteves Cardoso referia, com o desassombro que o caracterizava (ele é alguns anos mais velho do que eu, digo isto nem sei porquê...), que "ó não-sei-quantos, já viste que agora eles somos nós?". Ele referia-se a um tempo de mudança muito seu, muito deles, creio eu. Mencionava a assunção de responsabilidades que, mais dia menos dia, nos cabe a todos. E, no caso deles, naquela altura, tinha-lhes chegado a vez. A ele e ao "não-sei-quantos".

Temos filhos, alguns a adolescer vertiginosamente. A não perceberem bem o que se está a passar, a pensarem que a vida é feita de toques de telemóveis, Disney Channel e jogos de acção. Cuidando que o futebol deixou de ser um jogo, para passar a ser um espectáculo. Há putos que acreditam que o Maniche é mesmo o melhor médio do mundo! Parece-lhes que viver é rápido, e não é, é sempre muito lento, mesmo quando se morre cedo, que há quem diga que mesmo os minutos da morte parecem anos!

Até nos filmes lhes explicamos mal a vida: a vida que lhes ensinamos é mais o Shrek que o Terra Sangrenta. Não podemos explicar-lhes muito sobre aquilo dos reféns do telejornal, para não os impressionarmos, mas sentimo-nos culpados porque gostávamos de lhes confessar que aquilo da exibição do sofrimento alheio é apenas mais um exemplo triste de que andamos aqui a ser cúmplices na construção dum mundo merdoso. Muito merdoso. E que os reféns e os seus algozes são, apenas, mais um espelho da nossa incompetência. Sim, porque "é mesmo connosco", sim, que "eles, agora, somos nós".

O meu irmão veio aí escrever sobre os bombeiros e os incêndios. Ele sabe o respeito que tenho pelos bombeiros, sou amigo (enfim, isto é relativo) de quase todos os da minha terra.  Como sou médico no maior hospital de Trás-os-Montes conheço-os, aliás, a quase todos. E eles a mim.

Na minha terra (e julgo que nas outras todas) os bombeiros fazem o seu desfile de festa em Novembro. Num desses Novembros, de manhã, calhou estar na rua com o meu filho mais velho. Isto há-de ter-se passado há uns 5 ou 6 anos. Na Rua dos Camilos, que é uma rua estreita e central da minha pequena cidade, queríamos atravessar para ir comprar um doce, na pastelaria em frente. Não conseguimos. Durante largos minutos, os vários carros de bombeiros que calha cá termos para nos ajudarem nas nossas vidas, passaram, em cortejo vermelho, por nós, sem sequer abrandar. Mais de metade dos condutores, ao olhar para nós, saudou-nos em continência militar, sorrindo. E eu acenava também, meio encaralhado. O miúdo acenou também, feliz. Sentiu-se orgulhoso, achou que era importante e honroso que saudassem o pai, saudado se sentindo por interposta paternidade.

Eu calei-me, que aquilo soube-me bem (fraquezas de besugo). Mas, depois de ter lido o meu irmão mais novo, confesso-vos que o que eu devia ter ensinado ao meu filho era bem simples: que o orgulho que devíamos ter sentido, o orgulho bom, era o de termos sido cumprimentados por gente assim. Boa, valente, simples e pobre gente. Quantas vezes senti o cansaço dos meus olhos nos olhos dum bombeiro, a meio da noite? Tantas vezes. Ficamos sempre como quem pede desculpa um ao outro, entendem?

Tens razão, mano. Este ano vai ser igual, vai arder o que tiver de arder, a menos que o tempo mude. A menos que os tempos mudem, para o ano vai ser igual. E eu pensava que não, que eles andavam a tratar das coisas, para que fosse diferente, para que fosse melhor. Mas, pelos vistos, não. Andaram aí a assobiar cantigas diferentes.
Continuam a brincar connosco e com os nossos filhos, mano. E o pior, repito, é que "eles, agora, somos nós". Sempre que nos deixam, pelo menos.

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