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16.4.04

Reféns

Ser refém deve ser uma aventura complicada. Uma desventura feita dum medo muito grande e duma incerteza sem nome: "que vão fazer-me estes cabrões, a seguir?".

Um refém sou eu e você, que decidiu ler-me, sempre que nos torcem o destino de forma a lembrar-nos como somos praticamente impotentes perante qualquer força que seja maior que a nossa, mesmo que injusta, prepotente, assassina.

Contudo, nada de generalizações cómodas: já se sabe que todos nós somos reféns dos nossos medos e impotências e da injustiça arbitrária dos poderosos, mas não é apenas disso que aqui quero falar. As generalizações, se excessivas, tolhem-nos na decisão, na escolha, na análise das coisas. E uma análise tolhida acaba por ser, sempre, circular. Uma pescadinha de rabo-na-boca que nos incentiva à inércia de ficar quietos ou, pior ainda, à de fugir. A pior das inércias é a da fuga, quando se foge por inércia nem sequer é uma fuga, é uma desistência quieta.

Quero falar dos reféns a sério, daqueles reféns que temos visto nas televisões. São mesmo a sério e têm, sempre, medo nos olhos. Um homem a sério, com sério medo nos olhos húmidos, é um espelho fantástico da nossa séria e potencial fraqueza de futuros reféns a sério. É destes reféns que quero falar. Dos que, às vezes, depois do medo supremo e agónico da incerteza, ainda são mortos pelos seus algozes. Para nos servirem de exemplo, para nos forçarem a uma pedagogia cobarde de "viste? fica quieto!"

A discussão da legitimidade da intervenção no Iraque é interessante. Mobiliza intelectos, emoções, estimula as certezas e as dúvidas de cada um. Mas agora é diferente. Não é essa a questão. A questão dos reféns é que é a questão. É mais um degrau na escalada do terrorismo gratuito, despersonalizado, que faz sangrar de morte quem calha. É isto que nos vulnerabiliza a todos, se pensarmos bem.

Vi muitas vezes os olhos do italiano. Do homem sozinho e com medo nos olhos que homens sem honra nenhuma, algozes mascarados da merda que são, mataram. Não o mataram por ser aquele homem, não o humilharam porque lhes tivesse feito mal ou porque representasse uma ameaça, ainda que remota. Aquele italiano, aquele homem, era apenas um símbolo do seu próprio medo. E os filhos da puta dos algozes de todo o mundo, estes ou outros quaisquer, gostam de nos fazer sentir o nosso medo nos olhos dos outros. Querem assustar-nos com mais esta vileza gratuita de "olha que podias ser tu, pira-te a tempo, xô pitarada!".

Quero lá saber se o italiano morreu como um herói? Que é isso de morrer como um herói? É gritar uma merda qualquer, de raiva impotente, segundos antes de nos estoirarem com os miolos? É isso que deve ficar-nos como exemplo? É?
Isso serve, quando muito, para, se formos filhos, pais, amigos ou amantes de quem assim morre, nos enganarmos com a inexistência do medo em quem nos morre. "Ele morreu sem medo", disse o engravatado porta-voz italiano do requiem correcto .

Nada mais falso. Morreu com o naturalmente gelado suor de morrer.

Quando assassinaram o líder do Hamas eu disse que "havia menos um cabrão à face da Terra". Mantenho. Nos olhos desse estropiado nunca vi senão ódio.
Com este italiano de olhos com medo, morremos todos mais um bocadinho. É certo.
Mas, se cedermos a estes filhos da puta que matam sem medo de morrer, que matam sem tino, suprema abjecção do acto de matar (como eu já aqui disse um dia)... passará a faltar-nos bem pouco para nada termos a ensinar aos nossos filhos, senão o medo de ter medo. Bela herança.

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