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14.1.04

A tranquilidade do medo

Hoje estou, mais uma vez, muito cansado. Dói-me o corpo e a incerteza de poder ter falhado. Dói-me ter deixado velhos deitados em macas e espanta-me terem ficado só dez doentes internados fora do serviço de medicina interna. Às vezes são mais de vinte. Terei dado altas arriscadas? Irei ter chatices por isso? Que critério rigoroso existe no meu trabalho que me permita, entre tanta decisão... decidir que decidi sempre bem?
A labuta médica é, simultaneamente, braçal e intelectual. No serviço de urgência, sobretudo se se é internista (nenhum médico doutra especialidade me desdiz), o cansaço físico pode ser angustiante. Mesmo apenas ao fim de 12 horas. É engraçado, há 10 anos atrás eu não me cansava tanto. E até há seis meses cumpria, pelo menos, 24 horas semanais (seguidas) de serviço na urgência. Prosseguia, no internamento e na consulta, na manhã seguinte, trabalhando, por vezes, 30 horas consecutivas.
Agora já não. Ganho menos dinheiro, que eu sou "bicho de hospital", não trabalho fora. Mas há dinheiro fácil, dinheiro que custa ... e dinheiro que pode matar. A nós e aos outros. Trabalhar demais na urgência dá dinheiro desse, ou pode dar.
O cheiro da urgência, onde se amontoam os humores e os miasmas dos doentes e dos que tentam tratar deles, é-me cada vez mais intolerável. Um sistema que privilegia a "drenagem" sucessiva para centros mais diferenciados, proporciona que seja possível o "atafulhar" duma área teoricamente destinada a doentes agudos ... por doentes crónicos. Mesmo que "agudizados". As patologias crónicas têm a sua evolução natural e os seus momentos de agudização. As chamadas "descompensações" (duma diabetes, duma insuficiência cardíaca, duma bronquite, do que seja). Os chamados cuidados primários remetem à urgência hospitalar cada vez mais doentes destes. Outros chegam directamente. Para os doentes, se houvesse espaço, tempo, energia, gente que chegasse, seria melhor: observação por médicos diferenciados, possibilidade de exames subsidiários no mesmo dia (às vezes...outras não, que estamos cada vez mais a poupar no "impoupável"), melhor orientação. Eu não tenho dúvidas disto. Confio pouco na eficácia dos cuidados primários. Não é preconceito, nem generalização fácil de homem fatigado. Farto-me de receber cartas de colegas que denotam, ao mesmo tempo, angústia, falta de meios, de tempo e, algumas vezes, de preparação. Entre outras coisas. E, sobretudo, essas cartas são a apresentação formal de pessoas, muitas vezes idosas e acamadas ("amacadas", é melhor assim, que é em macas que nos chegam e que, muitas vezes, permanecem) que, pela sua simples e "amalgamada" presença, me fazem sofrer. Da mesma angústia e pelas mesmas faltas que acabei de referir, endereçadas a outrem. E é sempre mais fácil culpar de demissão quem nos remete cargas de trabalho e de medos.
Não é uma pescadinha de rabo na boca. É mais grave. É um ghetto protocolado. Desgasta. Faz-nos ter medo de morrer e de deixar morrer sem querer. E faz-nos deixar de acreditar. Em nós, nos outros. Sobretudo em nós, que um homem cansado é igual a uma mulher cansada e é igual a si próprio, sem grandes defesas.
Isto levado a sério é muito duro, acreditem. Desculpem o lamento. Deve ser apenas do cansaço. Mas creiam que, pelo menos este, o cansaço, é genuíno. Do resto eu sei que os senhores desconfiam sempre.

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