O problema da ultrapassagem
Eu vivo numa cidade e trabalho noutra, o que é comum. Todos os dias me desloco entre ambas, numa monotonia que me faz saber de cor o caminho que percorro. Chamo-lhe a estrada de Santa Marta, como toda a gente daqui chama. E aviso já: eu sou como toda a gente.É uma estrada que começa entre vinhedos e acaba entre fragas cinzentas, mantendo-se fiel a uma trajectória de "curva e contra-curva", do princípio ao fim. Mas que se atravessa bem, se houver sorte.
Hoje não tive sorte. Por vários motivos, mas este é um deles. Passo a descrevê-lo: é o problema da ultrapassagem.
O problema da ultrapassagem parece singelo, visto daí: "não vem ninguém de trás, pisca, reduz, acelera, guina e já está".
Na estrada de Santa Marta não se consegue isto assim facilmente.
Hoje, por exemplo, ali pela curva de Banduge, percebi que ia ser um daqueles dias. Colado à traseira dum camião que transportava toros de madeira, percebi tudo. À frente deste ia uma carrinha de caixa aberta, com areia, a seguir um carro conduzido por uma senhora daquelas que fazem permanente, depois uma motorizada Famel, dois carros (um deles azul lelé) conduzidos por indivíduos de boné. Fiquei alerta. Mais ainda quando percebi que todo este cortejo era antecedido doutra senhora de permanente e dum camião grande que faz os transportes para o LIDL. Combinação desastrosa.
Há poucos sítios para ultrapassar, na estrada de Santa Marta, ainda que a média do cortejo seja de 30 Km/h.
Mesmo nesses sítios, já se sabe. É preciso que os deuses estejam atentos.
Eis o primeiro sítio e, com ele, a minha primeira esperança. Mas não dá: a senhora que sucede ao camião da LIDL parece fascinada pelos pára-lamas do excelente e grande camião. Vai ali, "porrópópó", com as duas mãos no volante (aparentemente coladas a ele), a cabecita erecta para não desmanchar a "mise". Os dois tipos de boné desconhecem a existência de outra velocidade que não seja a quarta. A segunda e a terceira gastam muito "gasoil". E assim por diante. Nem o da mota se azouga, vai ali a pastar. Não se vê um pisca.
"OK!", penso eu. "Na próxima ataco!".
"Ei-la, é agora!". O tanas. Um dos tipos de boné decidiu fazer pisca. "OK, vou a seguir. É agora!... salta o "terceiral"!" ... E depois tenho de afrouxar. O tipo do boné fez pisca, mas a senhora da permanente, que olha de soslaio pelo retrovisor, num sorriso sem beiças, imita-o! Também quer. Sucede, apenas, que se limita a fazer pisca. Não reduz, não acelera, não guina... enfim, os senhores já entenderam. Era apenas uma manobra de diversão. Um dos tipos de boné buzinou. Eu já nem me dou a a esse trabalho. Acendo sempre um cigarro, nestas alturas, e entretenho-me a ouvir o Fernando Alves, que tem bom nome e boa dicção. E é esperto, embora ainda não tenha um blogue. Bom, eu tenho e é o que se vê. OK, paremos por aqui, que já aí vem outra recta. "É agora. Agora vou eu! Pisca e segunda, que eu tenho um Alfa 147!".
Azar. O tipo da mota resolveu sair detrás da viatura da segunda senhora de permanente e lá vai ele... ou ia! A senhora acelerou e não dá espaço ao pobre diabo, que tem de se encolher outra vez. Ainda para mais, com buzinadelas dos tipos da viatura de caixa aberta, que estão no limiar do gozo. Eu já sei o que vem a seguir, é sempre igual: o da mota faz gestos, os da caixa aberta buzinam e fazem piretes pela janela. Se passasse um trolha diria "Ó boa, larga o volante e anda cá!", se passasse Pacheco Pereira diria que "isto, sim, é uma cabala valente!".
Bom, o tempo vai passando. Acendo outro cigarro, e desatino com a merda dos CDs. Não sei quem é que os põe sempre na caixa trocada, queria os Tribalistas e sai-me a Carla Bruni, que não dá, é MP3! Praguejo. Eis o Covelo. "Se se portarem bem, passo quatro ou cinco". Boa recta. Eis-me de mão direita na manette de coiro, alerta, com olho de falcão. Não vem ninguém, mas os filhos da puta fazem todos pisca. "Que é isto, que se passa, estão doidos?". Não. É um TIR que decidiu parar a meio da recta. O motorista não se vê, deve ter ido aliviar-se atrás duma moita. Como o Fernando Alves já se calou e o CD não dá, canto a Traviatta com caralhadas soezes em ré menor. "Vai ser antes da Cumieira, naquela grande. Aí sim!". Só que, entretanto, já estão mais dezassete viaturas atrás de mim. A mais próxima é a dum garagista da capital de distrito, conheço-o porque já fez competição automóvel e é pequenino, com cara de macaco. Este é perigoso. Vai fazer a merda do costume: arranca e enfia-se no meio do que conseguir enfiar-se, completamente à Lagardère. Eu ia deixá-lo fazer isso, mas o tipo hoje excedeu-se, deu pisca, luzes de máximos e, pior ainda, buzinou-me. Buzinou-Me! Tipo "sai daí". Bom, este tipo de atitudes, enquadradas por tipos de boné, caixas abertas e senhoras de permanente tiram-me do sério. Mesmo percebendo que lá no fundo da recta estava um desgraçado a vir para cá, a fazer desesperados sinais de luzes, saltei para a esquerda, fiz pisca (a ordem foi esta, confesso) e só regressei ao meu lugar quando percebi que o símio de competição já não se safava. Recolheu também. Olhei pelo espelho retrovisor, vi-o gesticular e fiz o pisca da direita competente que significa "encosta que te chino já todo!". O tipo, como doutras vezes, fez de conta que não viu e sossegou.
Bom, a viagem de 22 Km demorou 45 minutos. É razoável.
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