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26.10.03

Doutoria e Senhoria

Esta questão das formas de tratamento é interessante. Em Portugal dá-se doutoria a qualquer licenciado, é tradicional. E há, de facto, um certo culto do “canudo” anteposto ao nome, em forma de “dr.”. E alimentamos algumas vaidadezinhas dessa forma, admito. Sem custo.
Sendo médico, exerço a profissão que, tradicionalmente, mais se presta à doutoria. Muita gente, pelo menos para cá do Marão, afirma que “vai ao doutor” e logo se percebe que “vai ao médico”. O médico é, tradicionalmente, o doutor por excelência. E não está aqui em questão o mérito ou o demérito da doutoria, evidentemente. O médico é, apenas, um licenciado. Curiosamente, os médicos académicos, que fazem doutoramentos, passam a chamar-se professores. Para os distinguir, a eles que são, de facto, doutores, dos outros doutores que somos nós, os licenciados.
Dar doutoria ao médico é costume, também, pelo que sei, em outras paragens e culturas. É ancestral. Havia sempre um “Doc”, geralmente amargo e dado ao etanol, nos livros de “cow-boys” que me lembro de ter lido, ilustrando isto que acabei de dizer.

Isto para chegar onde? Exactamente: à importância que atribuímos, justa ou injustamente, aos títulos que nos dão. Pensando bem, uma das coisas que mais me irrita é aquele tom jovial e desrespeitoso com que alguns desenrascados, que me não conhecem de lado nenhum, me chamam “doutor”. “Ó doutor! As análises estão demoradas?”. Este vocativo é aberrante e tremendamente desrespeitoso. Dá vontade de escarafunchar a profissão do indivíduo e responder-lhe, ao calhas “Não, ó canalizador (trolha, juiz, jogador da bola, marchante, tenente-coronel, ao calhas), estão quase prontas!”.

A questão é mesmo essa. Abandonando os caminhos da tradição, prefiro que me dêem senhoria que doutoria. Se me derem as duas, entenderei isso como prova de respeito. Respeito por mim, se me dão senhoria, e pela tradição, que me empresta a doutoria.

Mas isto da "senhoria" também tem que se lhe diga. Nunca gostei, ensinado (mal, se calhar) por gente antiga, de dar senhoria seguida, unicamente, de nome próprio: senhor António, senhor Paulo, senhor Rui.... O nome próprio, e isto não tem nada a ver com a cultura anglo-saxónica, presumo, habituei-me a usá-lo com quem conheço bem, sem senhoria anteposta.
É por isso que, independentemente de quaisquer processos de intenção, me parece que o senhor Juiz Rui Teixeira errou (quanto mais não seja por falta de cortesia) ao tratar por “senhor Paulo” o senhor Paulo Pedroso. A senhoria completa tinha de lha dar, e essa inclui, sempre, um nome de família.
Por acaso também acho que lhe devia dar doutoria. Porquê? Pelo mesmo motivo que, se calhar, lha daria se Paulo Pedroso lhe fosse apresentado noutro lugar qualquer. Ou não daria? É que se daria, sou levado a crer que tentou achincalhar o arguido, despersonalizando-o, despindo-o de parte da sua identidade, apenas pela circunstância penalizante de o ter ali, “a perguntas”.

Só mais um episódio, que já me calo. Em tempos, numa unidade coronária de um hospital central, uma excelente unidade, diga-se, onde trabalhei 6 meses, estava mais ou menos estabelecido entre a equipa de enfermagem que todos os doentes internados teriam tratamento igual: senhor “qualquer coisa”. E esse “qualquer coisa” era o primeiro nome. Diziam as enfermeiras, julgo que com a melhor das intenções, que “não há cá doentes de primeira e de segunda!”. Não consegui explicar-lhes o motivo de não concordar nada com elas. Devo ter-me explicado mal, na altura. Espero ter sido mais claro hoje.

Isto vai longo e fastidioso. Espero, ao menos, que não pensem que pretendo ser discípulo da senhora Bobonne. Não é nada essa a minha ideia.

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