Um dia igual aos outros
Manhã de consultas, atribulada, a começar pelo idoso com uma LLC-B, perfeitamente demenciado, que cantava o "Bacalhau quer alho” na sala de espera. Os outros “clientes externos” (é assim que se chamam os doentes, agora) estavam divididos, quando cheguei, entre dois gritos de guerra: "Calem este tipo, que já não há pachorra!" e "Coitadinho do velho, que é chalupa!". Eu demiti-me de participar na manifestação e fui vestir a bata de “cliente interno”. Exactamente. É o que eu, agora, sou.A coisa lá foi correndo, consulta após consulta. Um dos doentes ( vou manter a nomenclatura reaccionária) que estava mais farto de aturar o velho desatou a protestar "que eu estou aqui para ser consultado, e quero já!" o que me fez pensar em emprestar-lhe a bata e pôr-me a milhas bradando "o senhor desculpe, mas eu não quero consultá-lo para merda nenhuma, percebe? O senhor é que quer consultar-me a mim! Alguém o chamou, seu barulhento malcriado da trampa?". Isto às vezes, se for repetitivo, irrita, asseguro-vos.
Mas globalmente correu bem. Com um reparo: evidentemente, apupos para a inovação tecnológica do receituário informatizado, que faz com que um “cliente interno” (lá vou eu outra vez, sossega, besugo!) demore pelo menos cinco minutos a passar umas caixas de pílulas, isto se o sistema não bloquear. Bloqueia todos os dias, aliás, e os técnicos dizem-me para ter paciência e esperar, enquanto eles resolvem. Eu tenho muita paciência, lá espero sempre. E eles resolvem, para mal dos meus pecados, impedindo a SA de decidir que à mão (algum problema?) também é bom!
No fim da manhã decidi ir ao Quartel General da SA. Um impulso repentino.
Fiquei a saber, no caminho para o Quartel General, por um “sigurança” (eles dizem assim) que está na SA há 3 dias, que o facto de ele ser novo no local e não me conhecer... é problema meu. Eu devia ter um cartão identificativo, disse-me o jovem, com ar empresarial. Reconheci o meu erro, mas tentei alertá-lo para uma evidência que me pareceu oportuna: de facto, eu até já tirara as fotografias para o dito cartão, mas acontecia que ele ainda me não fora entregue, para o poder usar em evidências de lapela... Não me pareceu que ficasse sensibilizado com o facto, não sei se por lhe parecer irrelevante, se por não acreditar em mim. Eu tenho um ar levemente turco, convém referir, e só faço a barba de 3 em 3 dias, por uma questão de economia (de mercado, claro, sosseguem lá esses órgãos administrativos!).
Fiz o que tinha a fazer na SA (ou seja, esperei que o reverendíssimo gestor acabasse de escrever, em 7 papéis diferentes, umas assinaturas rabiscadas, para lhe dizer o que penso do facto de reformularem o meu programa de ambulatório sem me dar cavaco) e regressei ao meu posto de trabalho, pensativo com a resposta do excelente senhor: "que nem sabia como aquilo tinha acontecido, que era uma das questões que Ele estava ali para resolver, e que contasse com Ele, compreensivo líder, para tal desiderato". Evitei dizer-lhe que, por acaso, tinha sido ele, com minúscula cada vez menor, a introduzir a alteração, porque a expressão do seu olhar me remeteu aos tempos do Blade Runner. E safei-me a tempo.
De regresso ao estaminé , era hora de passar visita aos internados. Ala para a Cirurgia, que é onde os interno. Estavam todos bem, sobretudo um personagem sujeito às bolandas da quimioterapia, que insistiu em discutir os atentados contra Israel, entre vómitos. Dantesco. Expressou a opinião de que o assassinato da ministra sueca devia ter "causas sexuais, a gaja devia andar numa vida!", e a seguir vomitou outra vez, uma coisa amarela, indescritível. Eu admiti a opinião dele, e até lhe disse que pensava tal e qual, "estas tipas andam metidas em alhadas e depois queixam-se".
Saí dali mais confortado. No fundo, estas suecas são frescas, são. Climas...
Bom, a manhã passou-se nesta actividade altamente lúdica. Interrompi a labuta e fui ter com uma... Que se passa aqui? Não é nada disto! E não sou de rimas , muito menos lúbricas! Fui almoçar! Pedi, no bar da SA, uma sandes de leitão, com molho. Só para ver outra vez a Márcia, a que julga que parece a Heidi, a rebolar-se e a dizer, com olhos de choco plácido e mortiço, que “o senhor acha que estamos na Mealhada?”. E lá veio o bitoque, com batatas fritas daquelas pré-fabricadas, que sabem a nabo cozido. Evidentemente. Previsível pessoa, previsível refeição.
À tarde, fiz relatórios. Ultrapassei largamente o meu horário de trabalho e acabei por me irritar com isso. Liguei para a administração, porque queria dizer isso mesmo ao BigBrother de serviço, mas atendeu-me uma rapariga simpática que me disse que “ o senhor doutor está numa reunião, mas se quiser deixar recado...”. Deixei. Disse-lhe que reiterasse ao Excelso os meus mais veementes protestos de consideração. E que era só mesmo isso, pelo amor de Deus. Que não se incomodasse!
Abandonei as instalações da SA cabisbaixo. Ainda estava calor, e eu gosto de calor. Tinha o carro estacionado debaixo duma tília, à sombra. Entrei, arranquei e pus música tranquila. “Emboscadas”, conhecem?
Caramba. 11 de Setembro e ninguém me lembrou que dia era.
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