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29.11.07

A culpa do fim

Vamos imaginar que Amélia Rosa, aos 79 anos, reformada, existe mesmo.
E que tem, em existindo, algum dinheiro.
Vamos agora supor que lhe aparece um cancro no intestino e que, nos exames seguintes, se lhe encontram já metástases no fígado e nos pulmões.
Suponhamos, também, que Amélia Rosa, apesar da idade e do cancro, se sente bem. E que lhe custa aceitar que lhe proponham, assim sem mais nem menos e sentindo-se ela bem, uma operação aos intestinos e um tratamento de quimioterapia.
Amélia Rosa, que tem algum dinheiro e uma vida só, reúne o conselho de família e, imaginemos, vota-se toda nele. Resulta do sufrágio que, estando-se em Portugal, está-se mal. Muitas histórias. Amélia Rosa, ao fechar das urnas, sabia já que o seu destino e a sua esperança eram uma coisa só, que ficava lá fora, por exemplo em Espanha. Suponhamos isto, já agora.
E lá foi Amélia Rosa, "à fonte limpa".

Regressou hoje. Lá fora fizeram-lhe quimioterapia cara, cirurgia cara, embolização intempestiva de metástases caras de ordinárias, apenas de algumas delas - que se queden las otras, coño. Pagou o resultado eleitoral do seu medo e da sua desconfiança com língua de palmo. Já não tem mais dinheiro.
De lá de fora trouxe um relatório escrito em estrangeiro que cumpre, na forma e na apresentação estética, todas as normas de qualidade. Nele lê-se que a doença progrediu e que lhe propõem, agora, outra quimioterapia. Protocolos de quimioterapia sempre caros, sempre fora do "estado da arte", sempre entusiasmados de si e do seu formato "avant-garde", chiques na sua impertinência ineficaz, reles no seu preço e no seu propósito. Suponhamos, aqui, que o propósito é o que eu penso que é, ou seja, que o propósito é "o sórdido lucro legitimado na bondade falsa do cinismo asséptico do lucro sórdido", embora eu admita que mais ninguém sem ser eu ache esse propósito, a existir - que isto são meras suposições -, sórdido.

O certo é que, isto sempre imaginando, Amélia Rosa me chegou mais pobre, muito mais pobre do que quando foi lá fora, muito mais triste, ainda mais doente, "portadora de doença piorada lá fora", e veiculando-me papel onde consta mensagem cínica de esperança, escrita lá fora, muito bem escrita, tipo despedida cordial e fria, que reza, friamente - tão friamente que, se isto não fosse mero delírio de besugo, mereceria logo forca seguida de julgamento - "fazei-lhe agora vós aí assim, ou então fazei-lhe assado, que dizemos nós, e ponto final, cordialmente, por nós já está".

Amélia Rosa não quer voltar lá fora. Se existisse, provavelmente iria morrer aqui, com os culpados do costume, continuando a duvidar fortemente de tudo o que se passa menos daquilo que a teria feito regressar, com pena: a conta bancária quase a zeros, suponho eu.

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