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15.1.07

Esguichos de besugo


Tudo se pode comparar. Preços, intensidades luminosas, frieiras, namoradas, calores, frios, namorados, charutos, castanhas, azeitonas, vinhos, vícios e amores, férias, sofrimentos, peidos, carruagens antigas, professores, apartamentos, vistas de apartamentos, filhos, mães, colares de pérolas, peixes, pais, computadores, habilidades, velocidades, tenacidades, pilosidades, número de sócios, cevadas, lágrimas, sorrisos, sorridos de cevados, garagens e tamanhos de pilas. Tudo.

Tem de haver uma bitola qualquer que permita a comparação? Melhor dizendo: têm de se comparar frios com frios, colares com colares, pilas com pilas?
Não. Pelos vistos, não.

Contra os "grandes portugueses", que a RTP anda aí a comparar sem critério entendível, nada me move. As coisas vêm como vêm. Se o toiro não se pega de caras há-de pegar-se de cernelha: nunca soube foi de nenhum que se não pegasse. E há artifícios para tudo, dependendo do artífice e da matéria que tem de moldar.

Não há nenhum denominador comum que permita, isolando-o, submetendo-o depois a um qualquer instrumento razoável de medida, comparar Amália Rodrigues, Aristides Sousa Mendes, Afonso Henriques, Álvaro Cunhal, António Vieira, Florbela Espanca, Fernão de Magalhães, Pedro Nunes, Salgueiro Maia, Salazar, Carlos Lopes, Saramago, Camões, Eça, Humberto Delgado e Maria de Lourdes Pintasilgo. Não se pode comparar assim, só por comparar, a não ser que se introduza na equação comparativa um factor emocional que nos provenha, a nós que decidimos comparar assim o incomparável, das entranhas.

Isto remete-nos, se fôssemos honestos remeter-nos-ia, ao menos, à teoria do herói acidental.

Há um filme sobre isto. Há vários livros. E há episódios diários, que cada um de nós conhece mas que não contamos, porque não valorizamos e - sobretudo por isto - não nos valorizam: a interiorização em nós do valor dos outros é custosa, detestamos - os que não somos modernos - penetrações avulsas fora dos carnavais. Que são três dias.

O critério da ausência de critério leva-nos, leva-me, sem sombra de pecado - sem sol não há sombra e um pecado só tem sombra se o sol lhe incidir de maneira não vertical - a Salgueiro Maia.
Se a comparação é baseada no aleatório, no "tudo ao molho e fé em Deus", qual é a bitola porque se medem os heróis? Como comparar, nesse lodo imenso e incomparável das grandes mulheres e dos grandes homens, os grandes homens e as grandes mulheres?

Tem de ser o herói ocasional, como me esforço por vos explicar, o que nos faz levantar. O homem ou a mulher impreparados, inesperados, inesperáveis, que se revelam, no cadinho do imponderável, ponderáveis e ponderosos, muitas vezes poderosos, ocasionalmente poderosos, por si só.

Salgueiro Maia. Aí em cima está a tumba dele, em Castelo de Vide. Há quem nunca a tenha visto, embora estando-lhe a dois passos. Mas a preguiça é o segundo maior pecado, segundo besugo, logo a seguir à falta de higiene. Besugo afirma isto porque besugo conhece preguiçosos que se lavam, preguiçosamente, mas não conhece ninguém escarcajado que seja indolente na insolência de negar isto da preguiça de não ir, desdenhosamente. A cultura, o saber, a religião dos que a fazem sempre, se verdadeiros, não são feitos de desdenhosas "Antunices".

O maior de todos os heróis, de todos os homens bons, quando nada se compara, é o herói ocasional. O que se revela assim sem contar, sem se contar; o que, de surpresa (para todos e para ele, se calhar sobretudo para ele, o surpreendido herói ocasional da ocasião que não criou) se agiganta, brava e acidentalmente, na sua completa inadequação para o pedestal que não pediu.

Devíamos olhar com outra atenção, com muita calma, para as pessoas que todos os dias encontramos, nos nossos desencontros com o nosso espelho, não vá estar ali alguém que mereça mais a nossa mão aberta e generosa do que nos merecem a memória de Camões, esse zanaga caceteiro dado a musas, a do introvertido e estéril Pessoa dos versinhos de alpaca, a do Pombal, esse vil e esperto cabrão, ou a do próprio Infante D. Henrique (que, covardemente, com seu irmão D. Duarte, como se impõe sempre a quem é candidato a ser sobrevivente sobre cinzas alheias, deixou ali, nas areias do Magrebe, pendurado na ira dos felás da altura, o Santo Infante, seu irmão de sangue, chorando de medo e dor, a santificar-se por eles ambos, para a lenda, enquanto ele, ele e o irmão que nos reinou, visonários de si, se posicionavam para a vida, a sua vida, a deles, na nossa).

Ride. Gozai. Fazei para aí chufas de arraial. "Ridículo, besugo! Então, agora o Maia!". Grunhi, refocilai para aí de gozo. Ide-vos foder. Não sabeis de intestinos mais do que o que vos convém ao hemorroidal, já gasto pela contra-corrente da vossa necessidade.

Não vou votar, claro está. Nem sequer agora, no Top-Ten que a sopeiragem já elegeu para a ejaculação final da grande punheta televisiva da memória colectiva.

Ao menos, que ganhe Afonso Henriques. Parece-me o que está mais longe dos que hão-de votar. Longe no tempo, longe no espaço, na dimensão não sei. Dimensão que, dizem, não era grande demais para coisa nenhuma. Mas, pelos vistos, era. Ou seja, ao menos via-se.

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