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10.1.07

Equívocos e manifestos

O maior equívoco do debate sobre a despenalização da IVG é a eternização do valor vida como argumento alegadamente decisivo: há vida, logo o aborto é ilícito. Começo por lamentar que quem conscienciosamente defende a despenalização se esqueça tantas vezes que a vida é, com efeito, um valor eticamente indiscutível e que interromper a formação de um ser vivo é irrecusavelmente um acto indesejável - pelo que essa matéria nem deveria, na na pureza da lógica, ser sujeita a discussão. Dir-se-ia, até, que todos deveriam dar essa questão como unanimemente assente. Essa, e a de que abortar é, irrecusavelmente, actuar com violência sobre a mãe e sobre o ser em formação.

Sendo, julgo, unânime que a IVG é indesejável numa sociedade humanista, o que resta então de relevante para discutir? Duas questões, parece-me: por um lado, a da legitimidade (e a dignidade) da punição jurídica de quem pratica o aborto; por outro, a da necessidade da criação de condições para combater o aborto clandestino que, como problema de saúde pública, não pode nem deve ser ignorado pelo Estado e pelos seus cidadãos. Descemos, portanto, do plano ético para o político. Trata-se, então, de saber como deve o Estado posicionar-se perante um mal social impossível de erradicar: ignora-o e assobia para o lado ou acolhe-o, encara-o de frente e atenua os seus efeitos negativos?

Se do referendo resultar uma vontade popular maioritária no sentido da despenalização, que sosseguem os espíritos mais fundamentalistas da defesa da vida: ainda que cesse a censura jurídico-penal, a censura social e moral subsistirá, eventualmente com renovado fulgor. Sabemos que o Direito não é a única forma coerciva de regulação social (se se aceitar a ideia de que há formas distintas de coercividade) e que as condenações morais e religiosas e os autos-de-fé (ainda que simbólicos) daí decorrentes continuarão a ser decisivos nas opções futuras da prática da IVG - quer no que respeita às mulheres que a pretendam praticar, quer aos profissionais de saúde chamados a colaborar nessa prática. Sosseguem, portanto, os arautos da libertinagem que o advento da despenalização possa trazer. Enquanto existir sofrimento, embaraço, consciência moral e pudor, estou certa de que cada mulher que decida recorrer à prática da IVG o fará por falta de outra opção ou, pelo menos, com sentimento de perda profunda.

Parece-me ser este plano de discussão - o da atenuação de um grave problema de saúde pública (com impacto profundo nos estratos sociais mais desfavorecidos) - o único possível no debate da despenalização. Um problema insolúvel, mas cujas consequências negativas podem ser acauteladas se o Estado encarar os seus cidadãos e as suas cidadãs como sujeitos de iguais direitos e de iguais deveres. Trata-se, afinal, de prosseguir a justiça material.

Nesse plano, o plano político-prático, a evidência salta à vista: por muito que custe a alguns activos participantes na discussão, falta ao género masculino alguma legitimidade para discutir a despenalização da IVG - a menos que abandonem os argumentos que lhes dita a sua inabalável consciência ética e a discutam do estrito ponto de vista do direito à assistência médico-social das mulheres potencialmente sujeitas à prática do aborto. Mas o sufrágio é, evidentemente, universal. Homens e mulheres iguais no direito ao voto, mas diferentes nas consequências do resultado do referendo.

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