E rego-a
Pacheco Pereira é uma pessoa peculiar. Prende a atenção, é inteligente, é teimoso, tem aquele tom de voz entre o baixo e o soprano (se ele gritasse, alguma vez, percebia-se melhor o que eu estou a dizer), aquela barba grisalha que contrasta com os olhos pequeninos e cansados, tem gestos contidos, parece sempre que nunca seria capaz de mexer as mãos se não se desse o caso de necessitar delas para lhe enfatizar o discurso, tem um vago sotaque portuense culto, que não chega a ser um sotaque e, sobretudo, sabe muitas coisas e repete, inúmeras vezes, pacientemente, frases como "não, o que acontece... é isto assim assim". Tropéis de palavras e de factos sem sair do sítio. Nesse aspecto é muito parecido com Prado Coelho e com Pulido Valente, que também são pessoas inteligentes, explicativas, um bocadinho maçadas com o mundo e - de certa maneira - com um biótipo sui-generis. Noutros aspectos já não.Espanto-me sempre com as pessoas que têm esta capacidade de ver de fora estando dentro, mas cuidando sempre estar de fora enquanto falam, enquanto pensam. Esta qualidade duvidosa de conseguirem ver de cima sem, sequer, objectivamente, pairarem baixo.
As coisas, os acontecimentos, para estas pessoas, não parecem ter corpo, não cheiram a nada. A estas pessoas parece que não lhes fica na boca o gosto a coisa nenhuma depois de nenhuma coisa.
Não precisamos verdadeiramente delas, destas pessoas, nem elas carecem realmente de nós.
Não há, na existência toda, esta questão do carecer, de facto. Carece-se porque se existe, mas pouca coisa existe - fora das questões da subsistência - por dela se carecer, verdadeiramente
Mas eu tenho uma tangerineira no quintal que nunca deu senão uma tangerina, há quatro anos. E deixo-a lá estar. Nem é pela sombra, ela é raquítica, nem duma poalha de sol protege. É porque gosto que ela esteja ali, viva, embora incapaz de se mexer (nesse aspecto, de acordo, isto pode ser uma parvoíce, eu próprio tenho mais duas tangerineiras que dão tangerinas e que também não se mexem) e, mais do que incapaz de ser viçosa, parecendo de amuo com a vida inteira que lhe viceja ao lado.
Não a abato, é pequena, fica ali assim, a cismar fora do tempo e da serventia. E pode ser que dê figos.
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