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9.5.06

Eu gostava era de ser o Capitão Furillo


Quando fiz quarenta anos parti a vida.

No entanto, para efeitos radiológicos e da estatística cicatricial da minha existência, fiz apenas isto - além de quarenta anos, o que é muito ano, excepto para o Costacurta: fiz uma fractura do quinto metatarsiano do pé esquerdo. Fiz aquilo que está ali em cima, coisa roubada ao maradona. Vão lá ver, ele a chorar o Rooney, voltem depois se vos parecer que devem.

Eu espero.

Só voltaram vocês? Perfeitamente, somos quatro. Olá, Pai.

Reparem: eu estava a fazer anos nesse dia. Tinha aqui, à noite, para cima de trinta pessoas que diziam que gostavam de mim e que estavam aqui por isso, pessoas de quem eu também gostava.
Hoje, ainda gosto dessas pessoas quase todas e - quase todas? - muitas ainda gostam de mim, embora já não consigamos dizer isso na cara uns dos outros sem nos parecer, a todos, que falamos apenas de anteontem e que falta música.

O meu Pai estava a dar uma volta pelo jardim, nas cismas dele, quando o vi, ali sozinho. E eu resolvi visitá-lo na sua cisma e dividir-lhe a cisma em dois. Ele vinha, eu ia, na minha ideia ficávamos ali os dois um bocadinho.
Trinta metros. Eram trinta metros e eram dez horas da noite, pelo amor de Deus, uma hora decentíssima para um filho se dirigir, por momentos que seriam sempre calmos, ao Pai que tinha vindo, à pressa, com a nossa gente dele toda, das suas férias, para estar aqui.

Eu sou de Agosto, nasci no mês das férias, de maneira que, isto é fatal, ou estou onde estão as pessoas, ou só estou com quem me vem aonde estou, por querer vir ou por bondade de perder esses ficares.

Percebem? Percebam: foi sempre assim.

Fui lá calmo. Levava um copo na mão, que era para ele, a ver se queria. Não bebe, é um boi querido, mas podia querer.
Nunca saberei. Caí, torcido no meu pé que me doeu, mas muito pouco. Muito torcido, muito pouco dorido. O pé e eu e, para ser sincero, ambos: pouca coisa para tanta letra.
Pensei que não era nada, "olha, torceu!", e levantei-me. Ainda lá fui, ao meu Pai. E tudo prosseguiu, assim, mais duas horas. Sempre sem dores maiores e sempre bem, ou mais ou menos. Menos mal.

Tinha urgência no dia seguinte, estava já naquele torpor de achar que à meia-noite era, já, tarde para mim. E acabou tudo à meia-noite, eu a pedir que se acabasse, tarde para mim, eu grato a todos os que aqui estavam, por ainda aqui estarem, tarde para eles, por me terem feito esquecer-me do que me tinha acontecido, que não era, de repente, mais que quase nada. Tarde para toda a gente.
Não me doía, juro, não me doía: esquecer-me disso nem sequer era difícil.

No dia seguinte, acordei cedo. Seis horas. Com dores numa espécie de inchaço duro que era o meu pé esquerdo inteiro. Havia ali uma saliência dura, na face externa do pé, que me fez pensar "estou fodido". "Estás fodido, Barbosa!", pensou Zidane, com os botões toscos da camisa do Hugo.
E estava.

Estava. Isto de estar fodido vem sempre de muito antes, vem sempre de muito longe, repararam? Isto não é bem isto, pois.

Não conseguia andar sem me doer. Às oito, já de banho tomado, liguei ao meu cunhado e contei-lhe, "olha, foi isto assim, assim, desculpa lá..." e pedi-lhe que me levasse ao hospital. Ele, nessa altura, como a mim também me bastava quando lhe bastava, bastou-me. Nessa altura, bastava um falar que o outro escutava sempre e fazia o que tinha de fazer para que bastasse ao outro o que bastasse, acho que bastava a ambos, isto.

Veio e levou-me. Por acaso estampou-se à vinda, guia menos à vinda do que à ida, falta saber em que sentido anda agora para isto se perceber tudo melhor.

O M.D disse, logo ali, que estava ali a fractura, a tal, a que eu tinha, a do Rooney, a "da bailarina". Estava aquilo assim, por conseguinte: quebrado e a pedir um mês de gesso e atrofia.

Hoje, coisas de há mais de cinco anos, já não me dói nada. Já consigo, outra vez, parar bolas "Roteiro" - são chatas, demasiado leves, sabem?, variam se lhes acertarmos no lugar do "pipo" -, daquelas que vêm de longe, batidas com efeitos por fora: já ficam ali, outra vez, com um toque só da sola e um jeito do joelho. Mesmo descalço.

Os meus filhos, que são mais afeitados aos peitos abertos do andebol, nas pernas e nos gestos e no resto inteiro deles, mas que têm força para os desportos todos - nadam menos do que eu, ainda nadam menos, claro, isso mal feito fora, que eu ainda consigo (quase) vinte e cinco metros em apneia, estilo livre cada vez mais preso (mas são muitos mais os golfinhos presos que há aí do que qualquer besugo será, um dia, livre!), dizia eu que eles, os meus filhos, que têm agora força e jeito para os desportos quase todos, nunca saberão que foi nesse dia, na noite dos meus quarenta anos, que eu me parti todo, porque foi nesse dia que percebi que tenho o azar supremo de marcar as minhas datas todas com o roxo das despedidas e que qualquer dia já não há mais frasquinhos dessa cor, só para as páscoas públicas.

E que já não sou, sequer, opção de banco para os desportos todos. Sou apenas titular discutível e pouco discutido de poucos sonhos.

Boa noite.

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