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25.1.06

Direita-Esquerda-Alegre-Pátria-Liberdade e ... fechar de tendas.

A propósito de uma pequena precisão que entendi introduzir, em comentário, a um post do João Tunes, no Água Lisa, o mesmo João escreveu um novo, este sobre especificamente os eleitores não necessariamente de esquerda que (também) votaram Alegre.

Identifica tal votação como marginal, o que eu concordo, sem discussão. Provavelmente 2 a 3% dos 20 que o Alegre recolheu. É mais do que o Garcia Pereira, mas menos que o Louçã, ou seja, é muito pouco.

De qualquer modo, a leitura deste último post do João Tunes, (em que agradeço o elogio que me faz, descontando o facto de que na mesma frase vitupera - "a contrario" - a família ideológica a que pertenço) suscita-me algumas notas. Que não deixo lá em comentário apenas porque não se trata agora de apenas comentar.

Eu compreendo que o João tenha como pressuposto do seu raciocínio que os não-esquerdistas que votaram Alegre o tenham feito porque ele andou por aí a falar de Pátria. É isso que resulta do que por ele foi escrito, e essa convicção, provavelmente, resulta da ideia feita que quem se sente ideologicamente à esquerda nutre sobre quem considera de direita.

Mas não é assim. Não que a Pátria, como ligação umbilical a um povo, uma cultura, um passado histórico comum, com heróis e vilões, invasores e libertadores, proezas e vergonhas, etc., seja irrelevante para quem seja de direita.

Mas não é por aí que se pode, a meu ver, explicar o voto não esquerdista no Alegre. Eu acho (e sublinho que esta é a MINHA reflexão), que esse voto provém de duas causas. Uma que qualquer esquerdista compreende por corresponder ao que ele pensa da direita. Outra que nem tanto.

Começarei pela primeira.

Uma das mais importantes distinções que ainda hoje é possível fazer entre a estrutura axiológica da esquerda e a sua equivalente à direita prende-se com a ligação afectiva aos antónimos individual/colectivo. A esquerda , quer na análise que faz da história humana, quer das sociedades que nela se foram sucedendo, dá enorme primazia ao que considera ser colectivo sobre os actos dos seus indivíduos. A direita, pelo contrário, lê a história através das suas personagens e dos seus episódios concretos.

Aprendi isso com grande clareza porque fiz a primária antes do 25/A, e o secundário até ao final da década de 70. Na primária aprendi a história de Portugal através do Viriato, do Conde D. Henrique, do Afonso Henriques, do D. João I e II, do D. Nuno Alvares Pereira, do Vasco da Gama e de outros menos importantes, como o Martim Moniz, o Alcaide do Castelo de Faria, a Deuladeu Martins, a padeira de Aljubarrota. Na primária, os descobrimentos foram feitos para alargar a fé e o império, e se não fosse a Ínclita Geração, desde o Rei D. Duarte ao Navegador Conde D. Henrique e ao regente D. Pedro (sem que nunca se esquecesse o herói trágico D. Fernando), não tinham acontecido.

No secundário aprendi a história "colectivista" de Portugal. Os descobrimentos passaram a ser feitos porque a burguesia precisava de matérias primas e mercados, a nobreza precisava de feitos militares que a justificassem, etc. Tudo passou a ser estudado por referência à estratificação social, sua manutenção pela classe dominante e sua evolução, mais ou menos revolucionária, pelas classes que tomavam, em cada momento histórico, consciência do seu poder. Tudo, claro, num contexto de que "poder" ou era o poder económico ou não o era na verdade.

Assim, e nesta perspectiva, tudo o que se passou tinha que se passar, e se D. Afonso Henriques não tivesse existido, outro seria. E, como ele, todos os restantes - Ínclita Geração incluída - não passavam de peões de um jogo social mais vasto, de que nem eles próprios nem ninguém tinha verdadeira consciência, até que Marx chegou e explicou isto tudo (não me chateiem com pormenores, eu estou a simplificar e já começo a duvidar se chego a publicar o que quer que seja, porque com o embalo que isto leva só daqui a trezentas linhas é que volto ao tema original).

Assim, há na verdade, descontando as matizes que nestas coisas sempre existem, duas perspectivas diferentes, eu diria mesmo duas estruturas epistemológicas da história e dos seus protagonistas. Que marcam também a forma como vemos o presente. À direita, vêem-se fundamentalmente as pessoas; à esquerda, os movimentos de que essas pessoas são meros afloramentos. À direita prezam-se muito mais os actos individuais, e se estes demonstrarem rasgo e coragem pessoais, mais ainda.

Isto, qualquer esquerdista compreende. Aliás, é por esta característica e modo de ser que a esquerda não se cansa de dizer que a direita é caudilhista, ou sebastianista, ou messiânica, criticando-a por isso mesmo.

E esta é, a meu ver, uma das duas razões pelas quais a atitude de Manuel Alegre - por ser eminentemente pessoal e corajosa - recolheu generalizada simpatia num campo que não é o seu. E não se pense que essa simpatia é cínica, porque "aproveitadora" de uma rebeldia no campo contrário. É genuína, é mesmo estruturalmente genuína.

Passemos à segunda.

O que agora escreverei - ao contrário do que acontecerá quanto ao que escrevi até agora - dificilmente merecerá o acordo de quem seja esquerdista. É que a mesma simpatia decorre de um outro valor inato à direita: o da liberdade individual, e sobretudo o da prevalência dessa liberdade sobre o interesse colectivo.

Aqui, claramente, entro em matéria de disputa feroz, que é a de saber, afinal, qual dos campos ideológicos tem a liberdade como bandeira. Porque estou pouco interessado em alimentar polémicas, direi apenas que ambos têm. E que ambos acham que o outro empunha a bandeira de uma liberdade falsa. Continuando a escrever evidências, direi ainda que ambas as matrizes ideológicas em causa têm exemplos de absoluta falta de liberdade em regimes inspirados na "sua" ideia de liberdade, pelo que nenhum dos campos pode, de facto, atirar a primeira pedra, sob pena de Intifada recíproca e interminável.

Convenhamos apenas nisto: à direita, as organizações e "aparelhos" diversos, que não sejam de natureza nacional ou religiosa, são pouco menos que coisas contranatura. Daí a sua menor capacidade de organização, o seu maior atomismo e a maior dificuldade de obter e manter um corpo ideológico estável e coerente. Não tem "bíblia" política, como a esquerda apesar de tudo tem, não tem um filósofo dominante, como a esquerda apesar de tudo tem, e encontrar um pensamento comum à globalidade das "direitas" (conservadores, liberais, laicos, cristãos, nacionalistas, "globalistas", e suas cambiantes, combinações e matizes) é tarefa próxima de impossível. O associativismo, à direita, existe, não há como negá-lo. Mas é sempre para regulação, defesa ou mesmo auto-regulação de interesses específicos, e não com o carácter global e de inserção total do indivíduo num Partido como - utilizando o exemplo mais paradigmático - o PCP.

E é por isso que o gesto de candidatura do Manuel Alegre, para além de ser apreciado à direita como um gesto marcadamente individual e corajoso, é-o também porque tem a liberdade como mote. A liberdade de um indivíduo face à organização a que pertence, organização essa que o preferia (ao indivíduo) amodorrado.

Dirão alguns, se calhar o João Tunes também: mas se ele em vez de falar de Pátria falasse das conquistas de Abril .... outra seria a conversa.
Direi eu: Parece-me que ele falou das conquistas de Abril, e de muito mais coisas ainda mais marcadamente "esquerdófilas". Mas é evidente que, por um lado, ninguém desconhece quem ele é e de onde vem, pelo que esses outros temas não foram surpresa. E é também evidente, parece-me, que o seu apelo ao "orgulho" na portugalidade não soou a falso, nem sequer a mera manobra de conveniência eleitoral, pelo que não gerou anticorpos, a não ser em algumas vestais da esquerda que, de resto, não o apoiariam nunca.

Para terminar: o levantar da tenda. Não posso concordar mais que é o que deve ser feito. O que ficará de melhor da candidatura do Manuel Alegre a estas presidenciais é justamente o sinal que foi dado de que nem tudo são "favas contadas" na nossa política nacional. E isso serve dois propósitos:

- Primeiro, dá àqueles que se empenharam na candidatura um incentivo de cidadania.

- Segundo, dá à classe política um sinal de que os seus "joguinhos" de gabinete não chegam para tudo e que, de repente, o que tinham por certo (a obediência dos rebanhos de que se julgam pastores) se esboroa. Pode ser que tenham percebido. Mas também pode ser que não ...

PS - Se algum esquerdista manhoso que seja improvável leitor deste blog retirar de tudo o que escrevi que o Alegre teve atitudes de direita, ou defendeu valores de direita ou o raio que o parta, é sinal de que: a) está mesmo ressabiado com o Alegre; b) não percebeu nada do que eu, escrevendo, tentei explicar; c) é mesmo manhoso, e isso nota-se.

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