Buracos
Em pouco tempo viu-se com três tubos saindo-lhe da barriga. Ligados a três saquinhos transparentes, um para permitir visão clara da textura e coloração das fezes, os outros dois, os que lhe saíam das ilhargas, a limpidez da urina.Passou a ter de si a ideia de estar exposto (sobretudo a si, que é o que mais interessa), na sua disfuncionalidade corrigida. Deve ter-lhe vindo à ideia, sobre si, de se tratar de um caso trágico de mau "tunning": um ostomizado sente-se pessimamente com os "aillerons" que lhe colocam.
Como o cancro progredisse, congelando-lhe a bacia ("frozen pelvis", chama-se assim, não tenho culpa do nome, nem do congelamento), confessou-me já lhe ter passado pela cabeça "arrancar aquilo tudo". Não se responde a isto, porque não é, sequer, uma pergunta. É um emblema de desespero que se põe na lapela do pijama.
A pergunta que apetece fazer-lhes, isso sim, acariciando-lhes a nuca cada vez mais magra - que é na nuca frágil, no nariz afilado, nas orelhas descoladas do crânio e na fundura dos olhos que primeiro se lhes lê o destino, e não se lhes pode acariciar, sem ofender os bons costumes, senão a nuca - é duma crueldade simples: "por que não arrancas?".
Alguns arrancam. Este não arranca, penso eu, porque tem ainda duas coisas: quem lhe acaricie a nuca sem lhe fazer perguntas e uma curiosidade quase pueril por se acompanhar até ao fim.
Palavra.
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