blog caliente.

3.7.05

A insuportável leveza duns glúteos

Vital Moreira, neste escrito, nada mais diz, de concreto (e ele tinha obrigação de se esforçar por dizer mais), que o seguinte: há gritantes carências no que ele chama de "pessoal da saúde". Diz mais coisas, mas são um bocadinho levianas, por falta de fundamentação e de conhecimento. Sim, que eu não acredito em má fé, logo vinda dali.

O "pessoal da saúde" não sei, mas eu, que sou médico (ou seja, apenas um dos tipos do "pessoal da saúde", designação que, longe de me ofender, me orgulha) digo a Vital Moreira, professor universitário e homem de trajectos, o seguinte:

1 - Há carências, sim. E sempre as houve. Por várias razões e, sempre, facilmente previsíveis.

2 - Se os senhores, se os portugueses todos, precisam de mais tempo das nossas vidas produtivas, digam-no claramente. Afirmem isso, com honestidade e sem entremeios de suspeição. Digam assim: "nós precisamos de vós, por isso é que vos propomos que fiqueis mais tempo". Proponham. E peçam. Confirmem-nos que precisam de nós. Eu percebo, aceito e aplaudo o princípio. E duvido que haja um único médico que o não perceba, o aceite e aplauda. Assim colocado. Sem necessidade de outra homenagem que não seja a precisão, que sabe sempre bem que a tenham de nós.

3- Não misture quem sempre esteve (forçado ou por opção) em regime de dedicação exclusiva à causa pública com quem, de qualquer dedicação, tem (e teve sempre) duas visões, consoante o olho com que olha.

4 - Perceba isto, por favor, senhor professor: 4x42=168. 4x35=140. Quem trabalha 42 horas por semana trabalha mais sete horas por semana do que quem trabalha 35; mais 28 horas por mês, mais (52x28) 1456 horas por ano. Ou seja, se quiser fazer as contas, em cada quatro anos de trabalho, um médico em dedicação exclusiva trabalha (apenas no seu horário normal) quase a mesma quantidade de horas que um qualquer outro funcionário, qualquer deles, em regime geral de 35 horas, em cinco anos. Era daí que derivava o princípio das tais "reformas antecipadas" de que fala.
Eu sei que há um acréscimo de ordenado por esse estatuto, mas sempre pensei que se destinava, desde a sua criação, a compensar a própria exclusividade, que proíbe qualquer outra actividade remunerada, seja em clínicas, seja em consultórios, seja em qualquer etecétara. Pensei que estávamos, nesse particular, mais ou menos "ela por ela", embora qualquer médico saiba que poderia ganhar, "lá fora", bem mais do que este acréscimo "cá dentro". São opções.
Dessas horas, muitas (no mínimo 24 horas por semana, senhor professor, doze das quais extraordinariamente ordinárias) são passadas em condições de especial penosidade, a menos que o senhor professor não considere especialmente penoso trabalhar de noite depois de ter trabalhado de dia, sempre na urgência (essa fomentadora do caos que toda a gente hesita em redimensionar), com a família em casa o tempo todo, sempre à espera do nosso regresso, no dia seguinte, para nos ver dormir como bois minhotos num sofá qualquer, a baba no canto da boca comatosa.

É necessário, perfeitamente. Somos necessários, estamos certos disso, gostamos de saber que somos necessários, mas é penoso. E a penosidade, mesmo que não mereça tratamento especial (até porque a aceitámos, e eu sou uma pessoa séria, rindo-me só quando posso), merecerá sempre maior respeito e menor suspeição.

O senhor professor universitário parece esquecer-se de que trabalha de cu sentado desde que se conhece. Pelo menos, desde que eu o conheço. A mim, apetecia-me, não fosse o senhor um bom bocado mais mais velho do que eu, mostrar-lhe as minhas varizes em gestação, aqui em baixo nos gastrocnémios, e a força que tenho nos braços, que o senhor nunca adquirirá a não ser que se dedique, tardiamente, ao ginásio. O meu trabalho intelectual é sobreponível ao seu, pelo menos, não duvide disso um nanossegundo. O meu desgaste físico, esse, acredite, é muito superior. Nem lhe passa pela cabeça, senhor.
Não falo dos polícias, nem dos senhores da GNR, nem dos professores: porque são casos diferentes e que não vêm, agora, ao caso.

5 - A reforma rendosa. Ó senhor professor: essa era fácil de resolver. Quer ver? Eu abdico, juro-lhe, uma vez reformado (se me deixarem fazê-lo, cansado como um bovino de carga, quando chegar aos 36 anos de serviço), de receber do Estado, dos senhores todos, mais do que a minha reforma do SNS. Parece-lhe bem? Passa-lhe pela cabeça que isto possa ser verdade? Pois é: aceito perfeitamente que não passe. Parece-me justo que o senhor desconfie sempre, o senhor tem ar de desconfiado. O que nem sempre é bom.

6 - O senhor, de penosidades, tem uma ideia diferente da minha: penoso, para si, há-de ser mudar de partido, num amplo esforço intelectual, ou teclar num computador espremendo as meninges. E escrever umas croniquetas bem feitas num jornal qualquer que lhe pagará, merecidamente, para o efeito. De resto, há-de ter educado os seus filhos, se os tem, como eu também faço, e outras coisas que toda a gente faz, com menos brilho que o senhor, seguramente, mas com (pelo menos) igual esforço.
O senhor, visto daqui, é bem menos preciso para o país do que eu sou, embora seja o senhor (e outros, consigo) quem define (com outros, consigo) as precisões do país. Cuidando eu que o senhor se inclui sempre nelas, ora, que dúvida a minha. E a mim também, pelos vistos, mas de forma condicionada pela minha potencial desonestidade. Eu, percebe, é isto que não lhe desculpo.

Nota final de domingo, quente e ocre, a nota final e o domingo:
O senhor, e os seus restantes companheiros de blogue, nunca leram o nosso. Já os citámos, já tentámos discutir, mas os senhores, que voam alto de mais (mesmo para as vossas pobres ossaturas aerodinâmicas), não ligaram. Os senhores, que não voam tão alto como isso, afinal, recusam-se, mesmo assim, a olhar para baixo. Fazem mal, desculpem. Deviam ler. Quem não se sente não é filho de boa gente. Os senhores, e outros senhores convosco, ignoram olimpicamente quem se vos dirige sem ser em louvaminhas. Mesmo que detenhamos a arte duma escrita impecável e espontaneamente virtuosa, os senhores não querem saber. "Quem são estes?".
Os senhores fazem-me lembrar o marido da Dra. Nogueira Pinto, aquele dos óculos grossos, um Jaime. Que, uma vez, na década de 80, numa daquelas sessões plenárias na RTP, em que se discutia não sei o quê, estando os convidados todos sentados numa bancada, interpelado por um homem que também lá estava, não gostando do teor da pergunta, se irritou. E, não podendo ignorar a pergunta, porque estava em directo, começou logo mal: "mas quem é você, desculpe?".
Como se da identidade brotasse mais alguma luz para as ideias do que a sua luz própria, a das ideias, em a havendo.

O senhor professor Vital Moreira não tem, nem das questões da saúde em Portugal, nem dos profissionais que com elas lidam, mais que umas luzes. E é o senhor que compra e escolhe as suas lâmpadas, ainda por cima.
O senhor desgosta-me um bocadinho (embora pouco, que eu espero muito de pouca gente) à conta de pequenas coisas como estas. Sabe, eu compro as minhas próprias lâmpadas, também, mas sei ver a luz da casa dos outros. Tão parecida com a luz da minha, senhor professor, mais "velas" menos "velas"!
Olhe: o senhor é, até prova em contrário, até ver, em certas questões, um cu sentado na minha inteligência. Tome nota e evite, ao menos por delicadeza, o flato.

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