Ciclos inguinais - 1 a 5
Que ninguém se atreva a dizer que este blogue não está atento às actividades das elites! Intelectuais e mesmo doutras!De cinco em cinco meses, ou talvez ainda menos espaçadamente, prometo prestar atenção à imprensa diária na sua vertente cultural e salientar, da forma mais encomiástica que conseguir, as obras primas que por aí pululam sem que o comum dos besugos delas se aperceba, por ser intrinsecamente parolo. Mea culpa.
Começo hoje (amanhã volta a Lolita e não me deixava começar, é certo, mas não é por isso, ora!).
O Público apresenta-nos, finalmente, "O Ciclo Cremaster" :
"O Ciclo Cremaster é composto por cinco filmes de Matthew Barney, considerado pelo "The New York Times" como "o artista mais importante da sua geração". Em Lisboa, no Porto, em Coimbra, Aveiro e Setúbal vão estar em exibição esses cinco filmes a que Barney deu o nome de "Cremaster" - o termo designa o músculo de tensão dos testículos - e que mostram o universo originalíssimo que consagrou este artista plástico, "enfant terrible" da arte contemporânea, considerado embuste por uns, génio por outros. Entre seres mitológicos, metamorfoses corporais, combates rituais, "showgirls", bandas "hard-core", paisagens apocalípticas e cenários como o Bronco Stadium, o Guggenheim Museum ou o Chrysler Building, são filmes que abarcam todas as artes, do teatro à ópera e à música."
Evidentemente, interessei-me pelo caso. Sobretudo depois de observar esta fotografia (informei-me e o retratado não é candidato a deputado, nem está doente):
Mas não foi apenas o fascínio visual que me moveu. Nada disso. Logo cinco filmes, dez anos de trabalho deste genial (ou embusteiro, que o Público deixa ali uma margenzita para alguma manobra...) indivíduo, todo ele debruçado sobre a problemática do cremaster (lê-se cremáster), caramba, isto merece alguma atenção!
Fui pesquisar. E dei com isto, que até transcrevo, para que os senhores melhor contextualizem a genialidade, se vos parecer o caso, de Barney. Tenho pena, mas o texto refere-se, apenas, de forma sumária, ao "Cremaster 3", ou seja, a um singelo quinto da magistralidade global do ciclo. Barney fez aquilo, aparentemente, em 2002, ano em que, se a memória me não falha, Jardel ainda estava a marcar golos no Sporting. Leiam com atenção, por favor, que isto é importante:
"Barney plays the Entered Apprentice and his opponents include the Order of the Rainbow for Girls (who look a lot like the Rockettes), Agnostic Front and Murphy's Law (two New York Hardcore bands), Aimee Mullins, and Richard Serra. Molten Vaseline, dental surgery, a demolition derby by vintage Chrysler Imperial New Yorker cars and a gorgeous creature who is half-cheetah/half woman all figure in this latest edition of Matthew Barney's fever dream. Much of the action takes place in two New York landmarks, the Chrysler Building and the Guggenheim Museum, as well as at the Saratoga Racetrack (upstate NY), the Giant's Causeway (Ireland) and Fingal's cave (the Scottish Isle of Staffa)."
Confesso que a passagem brusca da vaselina para a cirurgia dentária me fez derrapar de emoção, mas eu possuo uma alma sensível.
O meu interesse aumentou, evidentemente. É que eu conheço vários cirurgiões dentistas e estive para adquirir um Chrysler, em tempos, mas o meu sonho mais pecaminoso envolve, de facto, mulheres arraçadas de cheetah (ou, em alternativa, vestidas de chita, mas só com isso).
É notável como a pesquisa pode tornar-se febril quando estamos perante manifestações inequívocas de genialidade (ou embuste, o "Público", enfim, malandrecos, sempre ali a deixarem a verrinazita...). Quis saber mais. E fui saber, bebi disto tudo, mas cito apenas partes. É que já arquejo de emoção. A intelectualidade criadora, em nos penetrando pelo sítio certo, pode tirar-nos um bocadinho o ar:
"A obra de Barney é uma exploração dos limites da actividade performativa dos corpos, considerados como objecto de um processo de metamorfose infinita. Através deste método, Barney põe em causa a divisão em géneros (masculino/feminino), espécies (humano, animal, mitológico, fantástico) e estados (orgânico, inorgânico, fluido)."
Fantástico. Barney parece preconizar um mundo com quatro espécies, separando o homem do restante reino animal e admitindo, talvez em substituição da desinteressante espécie vegetal, quase sempre muito calada e quieta (se exceptuarmos algumas variedades de grelos), uma espécie mitológica e outra fantástica. Barney leu, demoradamente, o seu Tolkien, o que é notável e notório. E é sabido que quem leu Tolkien demora, depois, quando o deixam, muitos anos a fazer filmes. E são sempre vários, de modestas trilogias a verdadeiros ciclos. Esta é uma primeira nota. Mas há muito mais. Reparem nesta espécie de resumos sobre os cinco Cremasteres que Barney conseguiu realizar até ao momento:
Cremaster 1 - 1995, 40’ "Uma diva platinada desenha padrões geométricos com dois dirigíveis da Goodyear sobre um estádio de futebol, enquanto um grupo de showgirls interpreta uma coreografia ao estilo de Busby Berkeley."
Divino. Como se consegue condensar tanta acção em 40 minutos é que parece difícil, mas Barney, aparentemente, fê-lo. Embora com a ajuda de algumas coristas.
Cremaster 2 - 1999, 79’ "Magníficas e alucinantes imagens que vão desde os campos gelados do Canadá até às planícies salgadas do Utah, ao som de sinistra música de órgão, numa história que envolve o assassino Gary Gilmore (Barney, himself) e o seu suposto avô Harry Houdini (Norman Mailer, num dos seus mais arrebatadores cameos desde o Rei Lear, de Godard)."
Eis o revisitar do tradicional envolvimento entre o neto assassino e o avô transformista. Tudo com o órgão sinistro sempre a tocar, o que deve ser entusiasmante mas pode partir cremasteres menos dados a uma operacionalidade incessante. Não tentem fazer isto em casa.
Cremaster 3 - 2002, 180’ "É o trabalho mais extraordinário e hipnótico de Matthew Barney. O Aprendiz tenta passar por duas bandas ''hard-core'', coristas e uma mulher-felina, enquanto escala os vários níveis do átrio do Museu Guggenheim para, no final, enfrentar o seu mestre Hiram Abiff, o arquitecto do Edifício Chrysler (interpretado pelo escultor Richard Serra)."
Este filme já pode ser considerado um filme grande, porque demora dois jogos de futebol, sem intervalos nem descontos. Pode ser que se note ali mais suor, eventualmente. Ou mesmo mais fluidos. Valerá, fundamentalmente, pela hipnótica análise da dificuldade que qualquer aprendiz pode experimentar para conseguir passar por duas bandas hardcore (mesmo por uma, para um aprendiz, pode ser traumatizante; Barney arranja logo duas!) e pelo encontro final com Hiram Habiff que será, com alguma probabilidade, cremastérico. Esta descrição, aliás, é quase a tradução integral do resumo inglês que ali em cima coloquei sobre o mesmo filme. Fantástico. Isto pode significar que o filme é mesmo assim, às tantas.
Cremaster 4 - 1994, 42’ "Na Ilha de Man, duas equipas de sidecar competem em sentidos opostos à volta da ilha, enquanto o Candidato Loughton executa um número de sapateado, rodeado de bizarras fadas, até o chão ceder por causa da erosão e o candidato mergulhar numa fascinante e iniciática fantasia sexual."
Um filme revivalista (veja-se o pormenor delicioso do sapateado), mítico (as fadas, essas tontas fadas, descritas como bizarras) e dado à problemática do ambientalismo, como é notório na abordagem da erosão dos solos. O candidato acaba, aparentemente, por ir às putas, porque ninguém acredita que qualquer mulher decente da "ilha de Man" escolhesse viver com ele uma iniciática e fascinante fantasia sexual durante uma competição de side-cars, e logo em sentidos opostos.
Dispenso-me de referir Cremaster 5, fundamentalmente porque Ursula Andress já é uma senhora de certa idade. Talvez por isso o filme demore, apenas, 55 minutos. Posso deixar-vos é uma fotografia, roubada ao Público; presumo que as canetas e o resto são os restos da vetusta actriz. Se não são, podiam ser. Se tivesse uma fotografia do Vincent Gallo também a punha aqui, mas não colecciono fotos de "picheiro" (obrigado, MEC, por mais esta antiga pérola, cuido que da Kapa). Vai esta.
Por hoje é tudo, muito obrigado. E tentem ver isto desta maneira: Barney podia perfeitamente ter-se abalançado a uma co-produção com Manoel de Oliveira, protagonizada por Sean Penn e por um(a) dos(as) sobrinhos(as) do nosso laureado. Isso far-me-ia tender para uma sanha informativa ainda mais grandiosa.
Ou seja, podia ser ainda pior.
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