Esguichos de besugo (parte do jorro)
O alonso irrompe por este blogue adentro com ignóbil raridade, o que é pecado que nunca expiará com total justiça. Mas fá-lo sempre com tal fogosidade que, quem ele interpela, se sente impelido a responder-lhe (como uma vez fez o respeitoso Eça a Pinheiro Chagas) “em grande tropel”. Eu digo isto à vontade porque sei que o alonso evitará, na sua próxima incursão, arremessar-me às fuças a óbvia facilidade do “se admites vir em grande tropel, nem sei que te diga mais... olha, relincha!” .E, bolas para o homem, lá veio ele com a história dos médicos que exercem clínica privada (e que também, em parte maior ou menor, não declararão a totalidade dos seus privados rendimentos), misturando-lhes depois, em dose venenosa, aquele pecado original (não é original, data da criação do SNS, mas, em certa medida, vendo bem, a criação do SNS funciona, neste particular, como emulação do génesis...) do “emprego certo logo que se licenciam e depois, sacanas, quando já não querem, blá-blá-blá, sol na eira e chuva no nabal” .
Vamos por partes.
Amigo alonso: (vai assim, que epistolar também é preciso!)
Eu citei (enfim, não citei, apenas referi) coisas que li no Expresso. Por acaso - e eu não defino a linha editorial do Expresso, nem sequer do Notícias do Xisto, juro – não se falava lá dos médicos. Falava-se dos médicos dentistas, apenas. Ou seja, duma parte dos médicos que, tradicionalmente (até porque o SNS quis, ou permitiu, que assim fosse), exerce fundamentalmente clínica privada. Admito, perfeitamente, que também haja muitos médicos “não-dentistas” que declarem receber muito menos do que, efectivamente, recebem, na sua actividade clínica privada. Não há qualquer má fé da minha parte naquela omissão, que, aliás, nem isso pode ser considerada (uma omissão) senão com... má fé: é que, de facto, no Expresso, não se falava disso. E, o que parece, é que aquele grupo de profissionais liberais que referi mente, em média, descaradamente, quando vai preencher os papéizinhos, ou os formulários electrónicos, do IRS. Tu queres lá meter, nesse saco, os médicos “da privada”, alonso? Mete à vontade. Meto eu, até, por ti: ploft, já lá estão.
Este ponto é meu: na questão levantada, acusas-me, apenas, da falta dum “etc”. É o que os médicos, ali, naquele contexto, são.
Reposta esta verdade, vamos a outra. A nódoa marcante do “emprego certo”.
Eu não sei se a Ordem dos Advogados, ou algum sindicato que vocês tenham, ou mesmo algum jurista, isoladamente, enfim, se alguém defenderá a existência dum Sistema Nacional de Assistência Jurídica, definido em moldes mais ou menos paralelos (com as devidas adaptações, mantendo, apenas, a designação “utentes”, porque irrita muita gente, este besugo incluído, e é sempre bom irritar o próximo) aos do SNS.
Não sei, aliás, se, depois de criado este novíssimo Sistema, ele absorveria todos os profissionais da ciência jurídica que quisessem dedicar-se (em exclusividade ou não) a ele. Muito simplesmente porque, sinceramente, eu desconheço as necessidades que esse Sistema teria, em termos de “mão-de-obra”. Mas, se o houvesse, por absurdo, eu admitiria que só lá trabalhassem as pessoas que o Sistema (que seria, nesse caso, uma coisa que haveria, bem ou mal) necessitasse e, por delas necessitar, admitisse.
Já do SNS, uma vez que está criado (e eu não o criei, eu sou um jovem, ainda, aproveitando, até, com a leveza da minha juventude, para afirmar que nunca me pareceu que a Ordem dos Médicos e, mesmo, grande parte dos seus filiados, tivesse aplaudido a sua criação, na altura), conheço-lhe as virtudes e as carências. E sei que, mau-grado a “litoralização manhosa” de muitos profissionais, há verdadeiras razões de escassez global para que esse “emprego certo” se mantenha. E sobeje.
No entanto, alonso, tenho de te contar três pequenas verdades a este respeito.
Uma, é que não há, desde há largos anos, “emprego certo no Estado para os sacanas dos médicos”, pelo menos como tu insinuas que o há. Quando terminei a minha especialidade, em 1993, vim para o Hospital em que agora trabalho como assistente eventual, ou seja, sem qualquer vínculo à função pública. Foi nesse ano que o vínculo automático acabou, homem! Há 11 anos que a tua verdade deixou de o ser, passando a ser ingénua mentira! Depois, de facto, por abertura de vaga (e por concurso), entrei na chamada carreira médica. Mas só nessa altura. E quero crer que a vaga foi aberta por necessidades maiores que as minhas, não havendo culpa que, daí, me possa ser imputada. Nem a mim, nem às centenas ou milhares de colegas, meus contemporâneos ou meus sucessores nessa (a)ventura. Podes sempre culpar o Sistema, mas é melhor uma discussão de cada vez, que eu não possuo a tua ginástica mental.
Outra, é que com o regime das S.A., o que já era, passou a sê-lo ainda mais. Neste momento estão vedadas as admissões de qualquer profissional (sim, médicos também, até me quer parecer que sobretudo...) nos quadros do SNS. Excepto, evidentemente, como ditam os dogmas neo-liberais, por contrato individual de trabalho. Claro que podes dizer-me que “ora bolas, mas entram na mesma, têm emprego!” , e eu respondo-te, como há bocadinho, “será porque são necessários, às tantas” .
A última é esta: como uma vez já te contei, embora me mantenha (porque acredito nele) no regime de dedicação exclusiva, não o escolhi. Foi-me imposto (e não deveria ter sido) desde o internato complementar (Beleza & Sucessores) e, mais tarde, duma forma menos veemente mas não menos “paternal”, aconselhado com intensidade. Curiosamente, sempre na vigência de governos de cor alaranjada.
Este ponto, portanto, também é meu, mas se precisares dele eu empresto-to, pagas noutra discussão qualquer, oportunidades não faltarão, assim Deus nos mantenha escorreitinhos e ninguém nos faça reféns de coisa nenhuma.
Tu, a seguir, enfias-te por umas diatribes sinuosas, aparentemente desprovido do teu famigerado e protector capacete dos “karts”. De facto, eu não sei o que tem a ver o facto de a média (eu insisto nisto da média) dos advogados, aparentemente, engaldrapar o fisco, com o início tardio das aulas dos teus (e dos meus!) ganapos. Se eu fosse tortuoso e tivesse imaginação, até acabava por perceber que, quando tu disseste "Alonso, se pagasses mais impostos do que os que pagas nada disto acontecia ...", estavas aí a confessar alguma coisa de menos confessável. E que, quando falaste de empresas que insistem em não te pagar o IVA, querias dizer que há mesmo empresas que se recusam a pagar-to, como se isso fosse possível no nosso imaculado tecido empresarial, todo ele voltado para o desenvolvimento da nossa sociedade-povo-paixão-criação-de-postos-de-trabalho-Portugal-bandeiras-à-janela-durante-o-Euro-e-sempre!
Mas eu não sou tortuoso, a minha imaginação é um seco Alentejo sem Alqueva, de maneira que considero estes dois pontos nulos. A menos que tu admitas (num acesso de bondade) que cometeste dupla-falta, e nesse caso, o ponto (só um, vá, pronto) é meu.
Depois, zurzes a Função Pública. A Função Pública não tem, de facto, de ser aumentada. Ninguém, aliás, tem de ser aumentado. Ninguém tem, efectivamente, de manter (quanto mais melhorar) o seu nível de vida. O empobrecimento é livre e, embora não devesse ser obrigatório, admito que aches que deve ser estimulado. Na Função Pública e naquele outro contingente que é parecido com a Função Pública, que se chama “trabalhadores por conta de outrem”. Eu tento crer nisso, também. Tento, aliás, com toda a força, até porque esse empobrecimento redentor iria, estou mesmo a ver daqui, obrigar os relapsos “novos pobres” a deixar a vida que levam, de pecaminosa dependência dos desgraçados patrões que têm de lhes pagar e, assim estimulados, os que não morressem à míngua ou resvalassem torpemente para a aventura do assalto à mão armada, iluminados pela fome (que aguça o engenho e favorece corpos danone), criariam empresas florescentes. E assim por diante, criando um verdadeiro paraíso terrestre feito só de patronato, sem essa parasitagem obreira.
Tu desculpa, mas também não te dou este ponto, a menos que completes a tua obra e lhe dês um título. Pode ser, por mim (e é de borla), “Os parasitas: do seu extermínio à sua definição; por esta ordem cronológica, que me resulta mais fácil” .
Isto vai longo; deve ir, mesmo, penoso. E, por isso mesmo (e porque vou jantar), páro, pedindo desculpa pela extensão longitudinal deste jorro besugal. Só não juro que se não repete porque, às tantas, repete-se mesmo.
Mas dou-te razão numa coisa, alonso (sou teu amigo, bolas): acho muitíssimo bem que, como ameaças no teu ponto 1o, penses nisso! E que me trucides na volta do correio, como mereço, se estiveres para aí virado. Estás à vontade, porque eu protejo-me: uso sempre aquele capacete negro, faiscante de bonito, que te habituaste a ver por detrás, lá bem ao longe, lá no finzinho da recta da meta, lembras-te(?), sempre que tu entravas nela. Na recta da meta.
Abraços.
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