Aceito tudo, até que só devia ler. E ler mais.
Consigo aceitar a ideia de vir a pagar portagens numa futura auto-estrada que me façam ao pé da porta, uma qualquer, que me facilite as saídas e regressos. Mesmo que a alternativa aos meus trajectos diários para o trabalho sejam duas estradas municipais (é verdade, não são nacionais, são municipais...), percebo que toda a gente queira que eu pague a estrada VIP que vou usar, que seja eu que a pague toda.Consigo estender esta minha aceitação do princípio "tu usas, tu pagas" a praticamente tudo. Mesmo ao Sistema Nacional de Saúde, o que me superioriza (só em termos de condescendência, sosseguem) ao próprio Professor Vital Moreira. Consigo, até, perceber que o extingam, que "quem estiver doente que se amanhe". Consigo entender os raciocínios que, partindo daqui, nos levarão a penalizar, com indiferença carregada de lógica, os doentes com cancro que tenham levado vida devassa, fumando estupidamente, consumindo fumeiros nefastos para o estomacal, ou expondo-se a asbestos. Homem informado é homem responsabilizado, excepto se pudermos processar alguém, é outra conversa.
Vergo-me perante a evidência de ter de ser eu, porque assim tem de ser, a bem dos mais pobres, Bagão dixit, a abdicar dos benefícios fiscais que lá ia conseguindo através das pequenas poupanças que ia fazendo: ontem quiseram que eu poupasse, hoje já não querem, perfeitamente, quem sou eu para questionar as grandes questões da macro-economia? Eu sei, aliás, que a medida será universal, mas também sei que era, sobretudo, a mim que me dava jeito aquela torpe imoralidade, pecado original agora corrigido: "tu, que pagas tudo o que tens a pagar, que andavas contentinho por te devolverem 500 contos dos 4000 que pagas à cabeça, tem vergonha! Põe os euritos que não gastares no banco, a 2%, ou então debaixo do colchão, ou então consome. Vive o dia a dia, que tu és classe média, não há nada que se possa fazer por ti, não és suficientemente rico para me interessares como amigo, nem suficientemente pobre para me interessares como eleitor". Dizem-me isto e eu compreeendo. A opção pela dedicação exclusiva foi minha, embora não houvesse outra opção. Mas podia sempre fazer-me explodir contra uma parede rural.
Consigo entender que seja impossível controlar quem não passa recibos, quem evita IVAs e outras coisas evitáveis, quem não paga o que deveria pagar, embora eu pague. Às vezes penso que é injusto, mas depois explicam-me que eu faria o mesmo se pudesse e eu compreendo.
Aceito perfeitamente que me achem uma das pessoas mais imbecis do mundo por não aceitar uma das migalhas que me atiram: "Você é chefe-de-serviço, pode fazer clínica privada no hospital, fora do seu horário do trabalho! Por que espera?". E eu à espera que me lapidem por não conseguir entender como é que as duas coisas, tão límpidas e cristalinas para toda a gente, são conciliáveis com o meu rosto feio e sério.
Eu tento entender tudo. A sério. Peço, apenas, que tentem perceber-me também, na minha óbvia falta de entendimento do tempo em que vivo: fico um bocadinho triste, só isso, porque me parece que vamos ficando cada vez mais longe uns dos outros, indo por aqui. Mas não se sintam obrigados à minha companhia, tenho hábitos de higiene mas nem sempre cheiro muito bem das meninges. Já me disseram mais ou menos isto em várias ocasiões, na blogosfera inteira, mesmo quando nem sequer era comigo. Eu, ler, acho que sei.
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