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18.9.04

Imediatamente falso

Nada que não se suspeitasse: o Expresso revela que 70% da receita de IRS respeita aos rendimentos de trabalho dependente e que apenas 6% provém das profissões liberais. Esta estatística é tão escandalosa como incompreensivelmente duradoura, excepto num contexto de indolência, mais do que de impunidade intencional. Na verdade, tudo isto radica na encardida ideia de que ninguém retira benefício imediato do cumprimento da lei. O cliente do advogado, do dentista ou do arquitecto não beneficia imediatamente se lhe pedir recibo; o canalizador, empresário em nome individual, não beneficia imediatamente se emitir factura (neste caso, antes pelo contrário); o Estado não beneficia imediatamente se implementar os mecanismos de fiscalização e penalização há muito previstos na lei fiscal para combater a evasão. Ninguém beneficia de imediato, todos se prejudicam a prazo.

Nem o socialismo mais ingénuo ignora que não há um único cidadão - mesmo socialista - que, podendo, se escape ao pagamento do pesado tributo, para tal usando os artifícios que lhe estejam disponíveis sem risco maior. Abusando deles, se se sabe impune e se nada nem ninguém lhe ameaça grave penalização e a aplica, exemplarmente, ao prevaricador. Quem foge ao fisco não tenciona, conscientemente, prejudicar ninguém; antes protege o seu património do esbulho. Aumenta o rendimento imediatamente disponível, expande as suas possibilidades de bem-estar imediato. Pensa e age com a apreensão social de um eremita ou, pior, com a indiferença instintiva própria, e próxima, da mera sobrevivência. O imposto é, incontornavelmente, dinheiro nosso que nos retiram do bolso, mas as visões curtas que todos temos impedem-nos de procurar mais do que a satisfação dos nossos interesses imediatos e próprios - o próprio rendimento, os próprios benefícios, a própria reforma.

Mas não nos culpemos demasiado. O que se passa em Portugal há décadas passa-se em qualquer parte do planeta onde os executivos não sejam suficientemente musculados para impor comportamentos fiscalmente correctos. O oposto do que se passa, por exemplo, mesmo aqui ao lado na vizinha Espanha, onde todos se capacitaram - a bem ou a mal - de que a sobrevivência das prestações do Estado depende exclusivamente da capacidade contributiva de cada cidadão e que essa capacidade contributiva tem de ser proporcional ao efectivo rendimento bruto de cada um para que, feitas as contas, todos beneficiem, sem atropelos e sem pagamentos adicionais, daquelas prestações. Tudo isso, porque em Espanha o prevaricador é fortemente penalizado, as fiscalizações são reais e eficazes e os barões da economia vão mesmo presos. Ainda haverá quem se furte à impiedosa lucha contra la evasión mas, fazendo-o, fá-lo-á sabendo que pode, de facto, ser descoberto. Uma espécie de inquisição, embora legítima, mas não menos severa. O contrário, enfim, do que se passa cá, onde se sabe que a inquisição católica não passou mais do que uma secante ao país.

Esta é uma forma possível de provocar mudanças estruturais de mentalidades. Exige, de um lado, a implementação de medidas duras e corajosas de combate à fraude e à evasão e, do outro, as contrapartidas efectivas de benefícios, para que quem contribui apreenda, efectivamente, as melhorias impulsionadas pela sua contribuição. Exige, também e sobretudo, estrategas políticos e suficientemente impermeáveis a possíveis pressões das oligarquias económicas dominantes, que pensem e vejam o país ao longe. Lamentavelmente, aqui só temos o Bagão Félix, cuja estratégia político-fiscal tem densidade económica semelhante à dos livros das mercearias, aqueles do deve e do a haver. Não sou eu que o digo, é ele.

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