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2.5.04

Notas de rodapé III

1. Neste momento não resisto á tentação de dedicar este poema ao compañero besugo.

Dor de Alma

Meu pratinho de arroz doce
polvilhado de canela;
Era bom mas acabou-se
desde que a vida me trouxe
outros cuidados com ela.


Eu, infante, não sabia
as mágoas que a vida tem.
Ingenuamente sorria,
me aninhava e adormecia
no colo da minha mãe.


Soube depois que há no mundo
umas tantas criaturas
que vivem num charco imundo
arrancando arroz do fundo
de pestilentas planuras.


Um sol de arestas pastosas
cobre-os de cinza e de azebre
à flor das águas lodosas,
eclodindo em capciosas
intermitências de febre.


Já não tenho o teu engodo,
Ó mãe, nem desejo tê-lo.
Prefiro o charco e o lodo.
Quero o sofrimento todo,
Quero senti-lo, e vencê-lo.

de: António Gedeão

2. O Samuel está melhor. Sorri. Mas está infinitamente perdido no mundo. Pergunta-me se é verdade que o produto que tomou podia ser-lhe letal. Pede-nos para chamarmos a ex-esposa, que acaba por visitá-lo. Percebemos que usa descaradamente a doença como arma de arremesso. O nosso consultor de psiquiatria vai ter, certamente, muito trabalho com este rapaz. Clinicamente - muito melhor, cada vez mais longe de uma morte que, talvez nunca quis...

3. Chamam-me á urgência! De repente uma série de profissionais de saúde em serviço incluindo colegas meus, iniciam (agudamente) queixas gastrointestinais, outros apresentam salivação abundante, outros com alterações do comportamento - actividade delirante, agitação psicomotora. E, sem se perceber bem, entraram estranhos no serviço, um deles agitando uma barra de ferro. Ligo ao chefe de equipa a oferecer os meus préstimos - vou imediatamente para a sala de emergência, preparo toda a logística para introduzir ( em caso de necessidade) medidas de suporte avançado de funções vitais a alguns deles - os que ainda estiverem em condições de reversibilidade - provávelmente já haverá poucos ! Incrível, só há um segurança na urgência. Ainda por cima a testarmos as condições para o Euro ! Tento acalmar alguns dos energúmenos, mesmo com luvas calçadas - esterilizadas. Vem, finalmente a polícia (3 agentes) e tudo melhora. Internamos rapidamente os nossos colegas: alguns estão clinicamente mal. Outros têm vómitos abundantes e melhoram - mas estão gravemente anémicos. Infelizmente não há vagas nos cuidados intensivos, porque o responsável duvida sériamente do seu potencial de reversibilidade. Paciência, fazem tratamento conservador e seja o que Deus quiser. Felizmente, chega o Chefe de Equipa, e as TV's também. Querem o ponto da situação ! Ele afirma que o que aconteceu foi o resultado de um ano em que o serviço de urgência foi sistemáticamente prejudicado, que não havia necessidade de chegar a esta altura do ano nestas condições - sem segurança. Mas aceitou as críticas da imprensa, alguns erros cometidos e a derrota da desorganização. Retiro-me, com toda a colaboração e solidariedade com os colegas, nesta hora difícil.

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