La mala alimentación
Estou, finalmente, em casa. Já tomei um banho memorável e, a seguir, um bom pequeno almoço. Fui ver as cerejas e os damascos, que se desenvolvem a bom ritmo (as cerejas estão prontas para a apanha, antes que os melros acabem com elas) e respirar um bocadinho da manhã, odores de Maio findo. Tirei papeladas da pasta, o que me fascina sempre: “para que raio vais guardando esta treta se, invariavelmente, acabas por deitar mais de metade ao lixo?”. Os miúdos foram a uma feira medieval qualquer e ainda não chegaram. Já me não doem tanto as pernas. Começa a cheirar vagamente ao almoço, o que me dispõe bem. Será a minha primeira refeição quente desde o jantar de 28 de Maio.Há uma espécie de refeitório, no Hospital. Eu digo “uma espécie” porque aquilo não é bem um refeitório. A bem dizer, não se percebe muito bem o que aquilo é, sobretudo se a gente decidir alimentar-se lá. De facto, a gente não decide, às vezes tem mesmo de ser. Partindo do princípio (duvidoso, muito duvidoso) de que aquilo que nos servem é comida, então é muitíssimo fraca. Lembro-me de, nos tempos de Gaia, amaldiçoar a comida do refeitório do Hospital Santos Silva, chamando-lhe, indignado, “morte rápida!” . Muitas vezes saíamos e íamos petiscar ao Genève, embora saíssemos de lá convencidos de ter consumido “morte lenta!” . Eram os tempos do internato, da especialização, tínhamos menos 12 anos, parece que tínhamos, mesmo, outros estômagos. Moíamos tudo. E, ainda assim, que deliciosa comida, a de Gaia, comparada com a “lavagem” daqui. Para que percebam melhor, o refeitório do meu hospital actual parece servir, sem qualquer espécie de dúvida, “morte súbita!” .
Ontem, ao almoço, havia um arroz de qualquer coisa, que acompanhava uma coisa castanha e gordurenta que cheirava a ranço. Decidi comer um pão com ovo, fiquei indisposto, mas cuidei que era fome
Ao jantar, lá estava, sossegado e triste, o mesmo arroz. Desesperadamente abundante, ainda (pudera!), mirando-me com ternuras de argamassa. Ao lado, fumegantes e com o mesmo cheiro da coisa castanha do almoço, acamavam-se espetadas duma coisa qualquer, repelente. Seria perú? Devorei uma sopa de cebola e pedi, no gozo, o livro de reclamações. Deram-mo! Têm um livro! Abri-o, ia a escrever, mas o desgraçado livrinho abarrotava gordo, de denúncias irritadas e, pelos vistos, inúteis. Decidi fechá-lo, devolvê-lo à senhora (que me mirava zombeteira) e suspirar um “ora foda-se”. Ela, trasmontana e jovial (pudera, ia jantar a casa!), animou-me:
“- Não adianta nada, escrevem todos, mas ninguém liga. Sabe quantas pessoas cá jantaram hoje? Três, contando consigo. Mande-os foder, senhor doutor, e vá jantar fora, a ver se esta merda fecha duma vez. Eu não me importo de voltar para as limpezas.”
Respondi-lhe:
“A senhora tem, de facto, um ar lavado. Saia daqui enquanto pode. Tomara eu poder fazer o mesmo!”
Vou convidar o Director do Hospital para um almoço de trabalho. No ”refeitório”. Se o tipo não devorar aquela merda toda, enfio-lhe as ventas na latrinária gamela, enquanto entoo o hino do Benfica. Será entusiasmante e radical. Talvez me mandem de volta para Gaia...
<< Home