Páscoas
Hoje não vi televisão, nem ouvi notícias. Estive de urgência, mais uma vez. "Mais uma vez? Mas tu, agora, quase nunca fazes 24 horas!". Pois não. Bastam 12 horas a dar-lhe seriamente, tentando desesperadamente que não nos escape nada (regra elementar para que, no fundo, só nos escape aquilo que não fomos capazes de equacionar no nosso desespero de conciliar perfeições e fadiga), para nos desgastarmos profundamente.Ninguém tem de entender isto. Não se macem, que eu não estou para me maçar também.
Eu só vim aqui dizer que estive, mais uma vez, a fazer urgência numa área desenhada (teoricamente) para doentes agudos, paradoxalmente atulhada de doentes crónicos agudizados. Ali, empilhados em macas, borrando-se em frente uns dos outros, os velhos de 80 anos transformam-se num problema "de vagas", de "falta de camas", "de cheiros" ... transformam-se num problema. Os velhos funcionam mal. Funcionam como velhos. Têm dores, faltas-de-ar, faltas-de-dinheiro, faltas-de-filhos. Falta de tudo. Um crónico agudizado é um velho com falta de tudo, no seu trajecto recorrente entre o domicílio e o destino, que pode ser novamente o domicílio ou a (um dia) inevitável campa. O que se nos pede é que vençamos o cansaço e, para evitar dissabores maiores, que evitemos que lhes saia "campa" no nosso dia de martírio de "estar ali".
Há quem fale, no gozo, de PMC ("problemas muito complicados") como se falasse de "PMC" (Parece Mesmo Carnaval). Mas não é Carnaval nenhum. As urgências hospitalares, os hospitais quase inteiros , na sua área médica, são, cada vez mais, um depósito de cadáveres adiados. Que nós, internistas, vamos adiando o melhor que podemos para que não nos culpem, um dia, pela antecipação do inevitável. O resto é TVI, é ignorância parva de jornalistas e doutros parasitas da vida e da morte. Como alguns médicos, que preferem fazer estatísticas da sua pequena técnica mediática e monetariamente compensadora , a pensar-se, sequer.
Amanhã lá estarei outra vez. Ha sábados de Abril que parecem Páscoas adiadas.
<< Home