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12.3.04

Supremas simplicidades

Um homem que não tem tempo de esmiuçar o pensamento dos outros, vertido em gotas de sabedoria conhecedora e informada pelas páginas do mundo, tem, muitas vezes, uma visão simples das coisas. Uma ciência limitada, fácil, mas que é só sua. Mesmo que partilhada é só sua, porque embora já exista e toda a gente dela saiba, esse homem dela não tem conhecimento como coisa exterior, cuidando ter ela de si brotado apenas porque, de facto, assim foi. Isto acontece muito aos homens simples.

Um homem simples pode, perante as coisas de Madrid e do Mundo, sentir-se profundamente triste, genuinamente revoltado, imensamente intranquilo, solidariamente magoado, raivosamente impotente, afastadamente alheado.

Um homem simples pode, por ser simples, guardar para si as suas análises das coisas de Madrid e do Mundo. Sobretudo se nelas pressente emotividades e conflitos que o desnudariam todo, caso as expusesse na sua germinal simplicidade.

Um homem simples pode, ao invés, num assomo apaixonado de simples, derramar-se em espasmos angustiados de afirmação, numa tentativa de negar o medo na sua própria explicação, como se regressasse a uma infância de quartos escuros e de papões, por causa das coisas de Madrid e do Mundo.

Um homem simples pode cogitar, tristemente, na sua simplicidade, que as coisas de Madrid e do Mundo são apenas mais um trágico episódio colectivo dos nossos trajectos humanos, cada vez mais individualistas e tribais. Como se nos juntássemos, apenas, na desgraça e na dor de não o termos feito antes.

Um homem simples pode, contudo, limitar-se a pensar que é cada vez mais comum matar sem ter, sequer, ciência da cara de quem se matou. Suprema abstracção da morte. Suprema abjecção do acto de matar. E calar-se, nada dizer, num singelo silêncio de simples.

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