Arados
O sacana do tempo, segundo a segundo, parece que não faz mossa. Contudo, o sacana, acumula-se. A pilha de segundos que os meus filhos já têm!O sacana do tempo sulca-nos a cara e o corpo, como um arado impiedoso em terra arável. Afável. Sacana do tempo, que se mete só com os fracos.
Dos fracos não reza a História, excepto dos tantos que a gente vê a História rezar. Reza de todos, a História. E, por todos.
Falar do tempo é falar dos tempos. Tenho 43 anos, continuo a medir um metro e oitenta e dois, somei dez quilos aos oitenta que tinha há 10 anos, já não nado a ponta dum corno, parti um pé e fiquei com medo de fazer rotações rápidas, aliás a rapidez nunca foi o meu forte, nunca mais joguei futebol, ganhei medo aos karts, saem-me mal os falsetes à conta dos cigarros e da falta de treino, a culpa é do Beto Mendonça, que de cada vez que combinamos uma "jam-session" é amputado de um familiar, obrigando a luto competente, e nunca mais me entendem no sítio onde trabalho, ninguém sabe que eu, sim, eu, já soube cantar, contam-me as horas como se eu fosse contável, como o tempo, não entendem que o tempo nos conta a todos e que o que conta é o que se deixa feito, não o tempo em que o que se deixa feito se faz, que o tempo é só o tempo, só importa se nós deixarmos que o tempo seja mais do que aquilo que é, inevitável nos seu langanhoso correr e, por isso mesmo, desprezível sob o ponto de vista de atitude, porque não há atitude nenhuma que se justifique com o tempo, só no tempo.
Isto vai confuso. Mas é que eu estive a ver e a ouvir, na RTP, o Paulo de Carvalho a cantar "E depois do adeus", com um piano (era um sintetizador, pronto) e a minha vida por fundo, e há fundos que nos comovem mais que outros. E ele cantou melhor do que nunca, o sacana do Paulo de Carvalho. O sacana do tempo também esteve ali, a escutar, e parou um bocadinho. Eu notei. E o Zé Pedro e o João, os meus rapazes, pararam também, a ver o tempo parado, dando-me uma secreta esperança de que o tempo pode, mesmo, parar para eles e correr só para mim. Caramba! Mesmo dizer adeus tem de ter a lógica do tempo, não me lixem, não quero excepções que não pedi!
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