blog caliente.

12.12.03

El toro

Espanha tem coisas que não me agradam. Poucas, mas tem. Os desayunos, por exemplo: não há hostal, parador ou hotel onde a manteiga seja manteiga e não margarina. E há os platos combinados, que sabem sempre ao mesmo. As patatas, que, quando fritas, são das congeladas. Os postres compõem-se quase sempre de leche frita e de sortido de helados. E o abominável café, que nos enche de carência cafeínica quanto maior for a estadia (ainda que se tenha o cuidado de encomendar um café solo), mas que, no entanto, nos permite, a nós portugueses, afirmar gloriosamente, na nossa subjectiva e pequena vaidade, que pelo menos(!) o nosso café é melhor do que o dos espanhóis. E depois há as odiosas estâncias de férias da costa mediterrânica, que quase sempre tomam designações toponí­micas tropicalientes, portanto pirosas, do tipo "aguadulce" ou "isla bonita", aquelas estâncias que nos panfletos turísticos são propostas como "beautiful spots" plenos daquele ambiente pimba que ficou famoso com o "The Love Boat", essa inesquecível série de televisão em que as mulheres se riam muito e vestiam roupas de lantejoulas, os homens tinham grandes patilhas e usavam smokings espalhafatosos com camisas de rendinhas e tudo soava vagamente imbecil, embora doce. É nesses paraí­sos turí­sticos, tão procurados por portugueses pouco cautelosos e pouco exigentes, que os hotéis promovem festas nocturnas onde a animação é assegurada por manhosos conjuntos musicais cujo vocalista imita a voz do Tom Jones ou do Frank Sinatra com aquele inconfundível e saboroso british accent que só os espanhóis conseguem dar à língua inglesa. Experimentem pôr um espanhol a pronunciar a palavra spice, por exemplo.

Mas eu gosto de pensar que essa profunda inabilidade dos espanhóis para as línguas estrangeiras é um mero corolário do orgulho - exacerbado, enfim - na sua pátria. Eles, os espanhóis, amam genuina e irracionalmente a sua Espanha. Veneram e acarinham o rei e todo o infantado, os seus ícones agregadores da nação, semana a semana refrescando essa idolatria na salerosa Hola!, que vende e promove uma Espanha sentimental, febril de emoções primárias feitas de devoção pelas Rocios, Carmens e Lolas famosas e belas, todas berrantemente vestidas e maquilhadas, desabafando as suas vidas difíceis em que o amor apaixonado por um qualquer torero dá lugar, quando acaba, a um profundo desgosto que mostram, sem qualquer pudor (ou, talvez, pensando bem, com sentido de estado) em fotografias close-up que enchem os corações das espanholas comuns e anónimas de solidária dor. Espanha tem muita cor. Tem as cores das telas de Picasso, o vermelho dos filmes do Almodovar, que tão habilmente satiriza todo esse kitch espanhol ao mesmo tempo que o depura e o torna admirável e sedutor, o amarelo quente da vasta e rude Extremadura onde D. Quijote cavalgava o seu rocinante. E tem a poética e histórica Andaluzia dos vizires muçulmanos, do quase mí­tico Allambra e dos grandiosos Alcazares. E do sevilhano flamenco, chorando de raiva, nunca de baça e conformista tristeza. Espanha, ao mesmo tempo una e antagónica, tem românticos independentistas bascos, cidades desenhadas com humor e génio gaudiano, plazas mayores, tapas, movida, noites longas, história, carisma, pensamento, sentimento. Eu vejo-a assim, quente e colorida, forte e imponente como el toro que, desde criança, me habituei a procurar sempre que percorro uma qualquer autopista. Há poucos anos, comprei finalmente um pequeno mas fiel simulacro do verdadeiro, que coloquei junto ao pexixé, como na música do Rui Veloso. Um recuerdo de Espanha, pois.

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